Paixão Clandestina - Althea Mortensen




       
       
       Copyright © 1999 by Althea Mortensen
       Originalmente publicado em 1999 pela Kensington Publishing Corp.
       TÍTULO ORIGINAL: Every Tomorrow
       © 2006 Editora Nova Cultural Ltda.
       
       Resumo:
       América do Norte, 1767
       A inocente e o vilão
       Determinada a descobrir tudo sobre a inexplicável morte de seu pai, Adrienne decide desafiar as rígidas tradições da Colônia e embarca clandestinamente num navio, rumo à Inglaterra. Porém, o destino interfere nos planos de Adrienne, e ela se vê cativa do temível capitão Hawke, cuja reputação aterroriza os inimigos e fascina as damas que o esperam em cada porto por onde ele passa. Isolado da civilização, Hawke navega pelos sete mares a bordo de seu navio, obcecado por encontrar o vilão que destruiu sua família e o impediu de receber a posse da herança de seus ancestrais. O único interesse de Hawke é reaver o título de nobreza a que tem direito e voltar a ser lorde Nicholas Valcon, terceiro conde de Warrick... Ou melhor, este era seu único interesse, até ele conhecer a bela Adrienne, a mulher destemida que se refugiou em seu navio e se apoderou de seu coração!
       
       Autora:
       Althea Mortensen é consultora de moda, mas permite que seu temperamento romântico se manifeste na inspiração para escrever maravilhosas histórias de amor. Althea se considera privilegiada por ter o dom de criar romances com enredos envolventes e personagens cativantes e apaixonados.
       
       Julia Histórico 1385
       Paixão Clandestina
       Althea Mortensen
       
       
       Capítulo I
       — Não vou me casar!
       Sir Alexander Montgomery franziu o cenho diante da negativa obstinada da neta.
       — Jonathan Culverwell é um jovem respeitável, e reúne todas as qualidades para desposá-la — insistiu em tom firme.
       — Mas eu não...
       — O casamento será no começo da primavera. Você e sua mãe terão tempo suficiente para preparar o enxoval — o austero senhor concluiu, forçando-se a ignorar as lágrimas nos olhos de sua única neta.
       Adrienne Leslie olhou pela janela. Estava confortavelmente sentada no escritório do avô, e tinha outros planos em mente antes de descobrir que seria uma mulher casada em menos de seis meses.
       Ela mordeu os lábios, reconhecendo a determinação na voz dele. Não agora, disse para si. Não quando estou tão perto de conseguir!
       — Pense a respeito, minha querida — ele prosseguiu, suavizando o tom de voz. — Reflita sobre o que eu lhe disse, e reconhecerá a verdade em minhas palavras.
       Adrienne suspirou, incapaz de dar voz às suas objeções.
       Contrariada, visualizou mentalmente o filho de Adam e Charlotte Culverwell, cuja plantação de tabaco fazia limite com a fazenda do avô. Não havia dúvida de que o nome da família carregava a honra dos nobres ancestrais ingleses e era respeitado em todas as colônias da Virgínia. O filho mais velho do casal estava predestinado a assumir os negócios da família e a produzir herdeiros para perpetuar sua herança aristocrática.
       Conhecia o rapaz desde a infância, e gostava dele, admitiu. Mas a paixão não ia além de seu interesse pela política das colônias e da admiração que nutria pelo fato de Jonathan estar na universidade, privilégio masculino ao qual ela estava proibida.
       No entanto, que tipo de companhia poderia proporcionar-lhe, quando seu coração estava na Inglaterra?
       Adrienne não se sentia preparada para confrontar o lado prático do resto da sua vida. Quando fora procurar o avô no escritório, momentos atrás, sua intenção era discutir a viagem ao exterior e não as responsabilidades de um casamento. Seus planos para o futuro não incluíam um marido.
       Ela perdeu o olhar na noite escura, observando as primeiras estrelas surgirem no céu. Todas as janelas do aposento estavam abertas, e seus olhos acompanharam o movimento quase imperceptível das nuvens prateadas, banhadas pelo luar.
       Aquela hora, provavelmente, Jonathan estava em sua enorme biblioteca, dissecando um velho livro de filosofia grega.
       Cruzando os braços sobre o peito, ela meneou a cabeça em negativa. Na certa, não desejava o casamento mais do que ela, concluiu, consciente de que seu marido a proibiria de sair de casa... especialmente sabendo que ela planejava cruzar o oceano sozinha.
       Armando-se de coragem, ergueu o queixo e respirou fundo.
       — Sou muito jovem para me casar. Gostaria de viajar, vovô. Espero que não tenha se esquecido dos meus planos de visitar a Inglaterra. Quero conhecer a terra de meu pai e saber mais a respeito da história da família Leslie. — Ela sustentou o olhar, não se deixando intimidar pela expressão severa. — Sei que planeja ir para Londres no próximo mês. Leve-me em seu navio e prometo que, quando voltarmos, dedicarei toda a atenção ao que me propôs.
       Sir Alexander não moveu um só músculo do rosto, inabalável diante do tom de súplica.
       — Você tem vinte e dois anos, e está mais do que na hora de se casar. Ou prefere viver sua vida sem um lar ou família para confortá-la na velhice?
       — Eu já tenho um lar e uma família.
       — Você sabe a que me refiro, Adrienne — sir Alex retrucou em tom grave. — Além disso, a união será benéfica para as duas famílias. Adam já concordou com a data e o casamento será na primavera. Em primeiro de abril, você e Jonathan serão marido e mulher.
       — Mas...
       — Já basta, Adrienne. — Ele se reclinou na cadeira diante da escrivaninha e cruzou os braços sobre o peito. — Deixe-me a sós agora. Não há mais nada para discutirmos.
       Ela mordeu os lábios. Apenas o respeito profundo pelo homem diante de si a impediu de confrontá-lo.
       — Como quiser, vovô. Com sua permissão... — Levantou-se e inclinou a cabeça com reverência. — Boa noite.
       Sir Alexander observou a neta sair do escritório, e não conteve o sorriso ao vê-la relancear os olhos para os volumes encadernados que sempre lhe chamavam a atenção quando entrava ali. Adrienne adorava passar horas na biblioteca, mergulhada na leitura.
       A notícia sobre o casamento fora um choque para ela, admitiu para si. Talvez, se tivesse sido mais severo ao educá-la, sua jovem neta não tivesse desenvolvido tamanha disposição para argumentar. Indisciplinada, voluntariosa e independente... Mas a verdade era que se orgulhava de Adrienne, e seu coração se apertava no peito por lhe causar infelicidade. Porém, o casamento era a única oportunidade de garantir seu futuro.
       Sir Alexander ouviu o ruído abafado da porta do quarto se fechar no andar de cima. Sabia que ela sonhava com a chance de viajar e explorar a história de seus ancestrais. No entanto, o pai de Adrienne estava morto, e ela esqueceria aquela idéia ridícula quando tivesse um bebê em seus braços.
       Fechando os olhos, ele inalou o ar puro da noite. A ampla escrivaninha fora colocada defronte à janela, proporcionando luz no inverno e brisa refrescante no verão. Era ali que costumava trabalhar, administrando a contabilidade da produtiva plantação de tabaco.
       Sir Alexander se recostou na superfície fria da cadeira de couro e fechou os olhos.
       Sentia-se velho e cansado. Durante os últimos dez anos, permanecera na colônia, vivendo de forma isolada e pacífica. O solar que pertencera ao genro proporcionava uma existência tranqüila ao lado da filha, Elizabeth Ann, e de Adrienne. Protegido das influências políticas e do poderoso governo inglês, era o local perfeito, especialmente para um homem que desejava se esconder.
       Sir Alexander passou os dedos pelos cabelos grisalhos.
       Não queria que Adrienne tivesse o mesmo destino da mãe. Dez anos atrás, quando fora buscá-las na colônia para que voltassem para a Inglaterra, Elizabeth Ann se recusara a abandonar a propriedade em que vivera com o marido. A recusa obstinada da filha o ajudara a tomar a decisão que mudaria o curso de sua história.
       Ele decidira viver confinado nos limites impostos pela sociedade provinciana do rude território colonial, para o bem de sua neta.
       Sir Alexander retirou um lenço do bolso e enxugou as gotículas de suor que banhavam-lhe a fronte. Alisou o longo bigode, perdido em seus pensamentos.
       Na colônia inglesa, homens como ele haviam criado uma nova Inglaterra, com novos valores baseados em sonhos e no trabalho árduo, e desejava incuti-los em Adrienne. Não conseguira impedir o casamento da filha, mas estava decidido a não cometer o mesmo erro com a neta.
       Charles Leslie fora um tolo romântico e sonhador, e a filha herdara o mesmo caráter do pai, refletiu. No entanto, faria com que ela cumprisse suas ordens e a impediria de viajar nem que, para isso, tivesse de trancá-la no quarto até sua partida.
       Sir Alexander abriu o compartimento secreto da escrivaninha e retirou um envelope amarelado pelo tempo. Suspendeu-o, com dedos trêmulos, e retirou a folha que jazia esquecida em seu interior. Ele releu pela centésima vez o manuscrito em caligrafia elegante e bem-feita que exigia seu imediato retorno à Inglaterra. Deteve-se na assinatura determinada e firme ao final da página: Lorde Nicholas Valcon, Conde de Warrick, Londres, 1759.
       Haviam se passado oito anos desde que recebera a missiva e ele a escondera, da mesma forma que ansiava por esconder de si mesmo a razão pela qual não retornara à Inglaterra.
       Tremendo, sir Alexander fechou a mão ao redor do anel de ouro e pedras preciosas que cingia seu dedo. Ele recebera a jóia das mãos do rei, que o consagrara com o título de nobreza do qual tanto se orgulhava.
       No entanto, não fizera jus ao título.
       Cobrindo o rosto com as mãos, sir Alexander Montgomery lutou bravamente para não esmorecer. Não era momento para fraquezas. Afinal, estivera fora por muito tempo, e chegara a hora de enfrentar seu destino.
       
       
       Adrienne Leslie saiu do escritório do avô e fechou a porta com brusquidão.
       Como ele pôde ser capaz de fazer isso comigo?, revoltou-se. No entanto, por mais que se rebelasse, sabia que não teria como fugir da imposição de sir Alexander.
       Ela correu para o quarto e caiu sobre a cama, afundando o rosto nos travesseiros macios. Deixou que o pranto contido fluísse livremente, até que as lágrimas secassem.
       Exausta, mergulhou num sono agitado, entrecortado por soluços. Despertou com um sobressalto, com o vento alvoroçando as cortinas da janela. A lua cheia começara a declinar, e a esfera prateada se destacava no céu, refletindo seu brilho pálido na penumbra. Ela se levantou e saiu para a sacada, tentando aliviar a angústia que a oprimia.
       Fechando os olhos, inalou a suave fragrância que se desprendia das roseiras no jardim. Mesmo nas noites cálidas de agosto, o perfume da terra orvalhada e das folhas secas que antecipavam o outono era trazido pelo vento irrequieto que soprava das margens do rio James.
       Com o olhar perdido no horizonte, ela avistou o deque ao longe, sob o qual as águas caudalosas corriam num fluxo contínuo para o mar.
       Inglaterra... Europa! Oh, como desejava viajar e ver com seus próprios olhos o mundo que conhecia apenas através das histórias que seu pai lhe contava! Vivera mergulhada em um universo que confundia realidade e fantasia, imaginando como seria viver no castelo em que seus nobres ancestrais habitaram por muitas gerações. Depois da inesperada viagem da qual seu pai nunca retomara, ela passara a acalentar o sonho de visitar o castelo em que ele crescera. Talvez, assim, pudesse compreender as razões da súbita viagem que o levara de volta à terra natal, oito anos atrás... Talvez fosse a única forma de descobrir a resposta para sua morte.
       Adrienne estava perdida em suas reflexões quando um ruído no jardim chamou-lhe a atenção. Observou com interesse os dois vultos que emergiram das sombras, entre as árvores.
       Estreitando os olhos, notou que havia um homem e uma mulher, conversando entre sussurros, e sentiu o rosto ruborizar ao ver que trocavam um beijo apaixonado. Na certa, eram dois escravos da fazenda que haviam se encontrado secretamente, pensou.
       A seguir, a silhueta feminina se esgueirou para a lateral da casa, e ela reconheceu o perfil de Stacia, a aia que morava no solar.
       A cena romântica despertou-lhe uma ponta de inveja.
       Quando me apaixonarei?, indagou à lua. Quando chegará minha vez?
       Porém, apenas o farfalhar das folhas ao vento respondeu sua pergunta.
       — E por que vovô está tão obstinado em fazer com que eu me case? — sussurrou por entre os dentes, irritada.
       Mesmo sob a fachada de severidade e rigidez, o avô sempre fora afetuoso e tolerante. Desde que assumira as responsabilidades na propriedade que pertencera a seu pai, ele cuidara pessoalmente da sua educação.
       Adrienne sempre acreditara que poderia se casar com o homem pelo qual se apaixonasse, já que não necessitava do dinheiro ou da posição social que um marido poderia lhe proporcionar. Por que a súbita urgência para que desposasse Jonathan, quando ele próprio era contrário a casamentos de conveniência?
       Com um suspiro desolado, apoiou-se na amurada e perdeu o olhar no movimento contínuo das águas do rio James. Naquela manhã, o avô havia declarado que pretendia viajar para a Inglaterra a negócios. Se ao menos pudesse acompanhá-lo...
       De súbito, uma idéia que a princípio lhe pareceu absurda começou a ganhar corpo em sua mente. Com o peito inundado de esperança, ela voltou a se deitar, pondo-se a fitar o teto enquanto forjava um plano de ação.
       Quando os primeiros raios de sol invadiram o quarto, Adrienne se levantou, animada por uma nova esperança. Sim, teria de dar certo!
       
       
       — Stacia, eu a vi no jardim, com seu amante — ela comentou casualmente enquanto a mucama penteava-lhe os cabelos, pela manhã. — Se mamãe souber que você está negligenciando seus deveres, não sei o que poderá fazer!
       — Não é sua mãe que me preocupa. — A serviçal repartiu a farta cabeleira, deslizando com cuidado o pente de marfim. — Tenho medo do que seu avô possa fazer.
       — Nesse caso, tenha mais cuidado — Adrienne aconselhou, afastando a mecha de cachos negros que cobria seus olhos. — Não é prudente trocar beijos apaixonados bem debaixo da janela do quarto dele.
       — Não se preocupe, eu sei me cuidar. E, agora, pare de se mexer e deixe-me terminar.
       Adrienne permaneceu em silêncio enquanto seus cabelos eram vigorosamente escovados.
       — Você sabia que vou me casar?
       — Verdade? — Stacia manteve a escova suspensa no ar e abriu a boca, admirada. — Com quem?
       — Jonathan Culverwell. — Ela suspirou, desolada. — O casamento será na primavera.
       — Por que tanta pressa? Você mal terá tempo de se preparar!
       — Não vou me preocupar com isso agora. Pretendo viajar antes das bodas.
       — Viajar? — Stacia ecoou, surpresa. — E para onde vai?
       — Tenho planos de ir para a Inglaterra — respondeu em tom sonhador.
       — E como pretende chegar lá? De barco?
       — Claro que não vou de barco! Vou embarcar no navio de vovô. Ele disse que pretende partir no próximo mês.
       — Adrienne, ele nunca permitiria! Navios mercantes não são apropriados para moças. É muito perigoso. Seu pai partiu em uma viagem marítima e nunca mais voltou.
       No pesado silêncio que se fez após o comentário, Adrienne forçou-se a afastar as amargas reminiscências. Suspeitava que Stacia também fazia o mesmo, tentando esquecer da viagem no navio que a trouxera da África para a colônia. As histórias da travessia que ouvira da mucama deixaram-na com lágrimas nos olhos e com o coração oprimido pelo medo.
       A aia desapareceu por um segundo dentro do quarto de vestir de sua ama e regressou trazendo um vestido leve, adequado para o calor do final do verão.
       — Pode haver tempestades — comentou, ajudando Adrienne a abotoar o espartilho. — Ou piratas.
       — Piratas!
       — Oh, sim! — Stacia disse com autoridade. — Os mares estão repletos de navios piratas, esperando o momento certo para roubar a virtude de uma donzela. Ouvi, certa vez, que uma embarcação pirata atacou um navio que atravessava a costa da Nova Guiné. Algumas das mulheres a bordo preferiram se atirar ao mar a se submeterem à brutalidade dos mercenários.
       — É mesmo? — Com um sorriso de desdém, Adrienne enfiou o vestido nos ombros.
       — É preferível tirar a própria vida a ter a virtude roubada de forma tão cruel.
       — Não vou encontrar esse tipo de vilania, Stacia. As viagens pelo mar são mais seguras atualmente. A embarcação de vovô tem um verdadeiro arsenal de guerra, e a tripulação está bem treinada para defender o navio.
       — Talvez você tenha razão, mas não há nada que possa defendê-la das tempestades.
       — Você está exagerando! Se fosse tão perigoso, ninguém se arriscaria a atravessar os mares. — Ela estendeu o dedo indicador para a aia. — Não importa o que você diga para me assustar. Eu já tomei uma decisão, e nada me impedirá de ir para Londres!
       — E como pretende fazer?
       Adrienne sorriu e tomou as mãos da aia entre as suas.
       — Você vai me ajudar!
       
       
       Um mês depois, uma potente embarcação entrou na baía do rio James e ancorou no cais. As velas brancas da escuna tremulavam nos mastros, em contraste com o céu escuro da noite.
       O Sans Felicia havia percorrido o oceano e deslizado por canais escondidos da região costeira até ancorar em Jamestown.
       Thaxton Bradford III observava solenemente enquanto a seleta tripulação descia para o cais. Aquela viagem não visava lucro. Os marujos haviam singrado os mares, enfrentando tormentas e privações, apenas em nome da lealdade e respeito que nutriam pelo capitão Hawke. Eles o acompanhavam em uma jornada que parecia não ter fim.
       Depois de oito anos no mar, a pista sobre o paradeiro do homem que destruíra a família do capitão o levara a atracar em Jamestown.
       Reflexivo, o primeiro imediato cruzou os braços sobre o peito e se recostou na amurada. Os meses transformaram-se em anos, e observara o amigo mergulhar em profunda melancolia, que se acentuava a cada porto em que sua busca se revelava infrutífera. Impedido de retornar à Inglaterra e reclamar sua herança, Hawke vivia a bordo do majestoso veleiro que se transformara em seu lar.
       A reputação de seu amigo se espalhou com o vento. Adversários fugiam de seu caminho, e as damas adoráveis que outrora o esperavam nos portos, fascinadas pela figura altiva e poderosa, passaram a se distanciar. Todos temiam a fúria silenciosa do capitão, até que sua vida se tornou solitária, com o oceano separando-o do contato com a humanidade.
       Ele reconhecia a dor profunda que parecia oprimir mais e mais o coração do amigo, esmagando-o com sua intensidade.
       Conhecera a mulher que Hawke amara com toda a paixão da juventude, muito tempo atrás. O rompimento do compromisso fora o golpe fatal que o impelira a deixar a Inglaterra e viver no mar.
       Bradford relanceou o olhar para a lua cheia, e um sorriso curvou-lhe os lábios ao se lembrar da noite em que partiram, sob o luar. Ele e o capitão haviam se excedido no vinho, no que poderia ser descrito como a última celebração da juventude. Ambos sofriam a dor de um amor perdido, e o capitão batizara o veleiro recém adquirido em homenagem à mulher que destruíra seu coração.
       — A uma vida nova! — ele brindara, estendendo o cálice de vinho no ar.
       — Ao amor! — Bradford havia entoado.
       — À vingança! — Hawke gritara.
       No dia seguinte, zarparam logo que amanheceu, cortando as águas geladas da baía.
       Bradford deixou de lado as divagações e seguiu para a cabine do capitão. A busca teria de continuar ainda naquela noite.
       
       
       Os dois homens entraram na taverna Black Stalion meia hora depois.
       — O que vão beber? — o barman indagou quando se sentaram ao balcão.
       — Duas canecas de cerveja.
       O capitão Hawke passeou o olhar pelo ambiente. Comerciantes, casais e mercadores conversavam animadamente, ocupando todas as mesas do salão.
       — Vocês estão no veleiro que ancorou pela manhã? — o barman perguntou ao encher as canecas com cerveja.
       — Sim — Hawke respondeu com cautela. — Por quê?
       — É uma boa embarcação. — Colocou as canecas diante deles e se inclinou sobre o balcão. — O que estão transportando?
       — A embarcação está vazia.
       — Ah... — O homem se aproximou ainda mais e abaixou o tom de voz. — Talvez estejam interessados em um carregamento de tabaco contrabandeado. Os preços são fixados pela Inglaterra e o mercado é pequeno demais para absorver a produção da colônia. Para que não morram de fome, os plantadores são forçados a vendê-la sem o conhecimento da coroa.
       — Não estamos interessados, obrigado. — Hawke tomou a cerveja de um só gole. — Traga mais duas canecas.
       — Está bem. Se mudarem de idéia sobre o tabaco, podem me procurar. Meu nome é Samuel.
       Um grupo de rapazes ocupava a mesa próxima ao bar, e um deles chamou o garçom e pediu outra rodada de bebida.
       — Ah, a encantadora srta. Leslie — Samuel murmurou, colocando as bebidas diante deles. — Ela vai se casar dentro de alguns meses, e esse grupo de pretendentes rejeitados veio lamentar a perda. Ouvi dizer que o jantar de noivado será amanhã, no Solar Leslie, a menos de dez milhas rio abaixo.
       — Leslie? — Hawke manteve a caneca suspensa no ar ao ouvir o nome. — Você conhece a família dessa jovem?
       — Charles Leslie?
       Hawke assentiu, encarando-o com expectativa.
       — Se pretende encontrá-lo, chegou muito tarde. Leslie está morto.
       Morto! De súbito, Hawke sentiu dificuldade para respirar. Não era possível que tivesse ido tão longe para nada!
       — O que aconteceu com ele? — Bradford indagou, apoiando os cotovelos no balcão.
       — Há cerca de oito anos, Charles veio à taverna para se despedir de mim. "Partirei amanhã, Samuel. Tenho negócios urgentes para resolver na Inglaterra", ele me disse. — O barman meneou a cabeça com pesar. — Nunca me esquecerei daquela noite. Ele zarpou ao amanhecer e, dias depois, o navio foi destruído pela tempestade antes que ele pusesse os pés na Inglaterra.
       — Vamos embora, Bradford. Não há mais motivos para permanecermos aqui.
       Eles voltaram ao navio em silêncio e foram para a cabine do capitão.
       — Nada! — Hawke esbravejou, esmurrando o tampo da escrivaninha. — Oito anos de busca, para nada!
       — Tem certeza de que é esse o homem que você procura?
       — Não há a menor dúvida! Esse homem é o mesmo Charles Leslie que procurei em todos os portos, durante oito anos.
       — O que vai fazer, agora que sabe que ele morreu?
       — Não sei, Bradford.
       Um pesado silêncio pairou sobre eles, até que o primeiro imediato o rompeu.
       — Já que viemos até aqui, vamos fazer um carregamento de tabaco — sugeriu, tentando animar o amigo. — Podemos vendê-lo em Barbados no inverno. Garanto que conseguiremos um bom lucro.
       — Ouro é o que menos me preocupa nesse momento — Hawke murmurou, desolado.
       — Bem, não precisamos fazer planos para o futuro imediatamente. Na verdade, navegar pelo golfo nessa época do ano é muito arriscado.
       Alheio ao que o amigo dizia, Hawke se levantou, pondo-se a andar pela cabine. Deteve-se na escotilha e mirou as águas escuras da baía, enquanto ponderava sobre o que fazer.
       — Vá visitar nosso amigo Samuel amanhã — ele disse de súbito. — Peça informações sobre a compra de tabaco e verifique se é possível carregar o navio até o anoitecer. Não quero ficar neste porto nem um dia a mais do que o necessário.
       O primeiro imediato respirou aliviado. Observou o amigo estudar o mapa náutico sobre a escrivaninha, e estava prestes a sair quando algo lhe ocorreu.
       — Capitão, não seria conveniente visitar o Solar Leslie antes de partirmos?
       Hawke o encarou sem esconder a irritação.
       — Não.
       — Mas se chegamos tão longe, por que não...
       — Acabou, Bradford. Temos de encarar a realidade.
       O primeiro imediato sustentou o olhar gélido pousado sobre si. Quando o capitão passou os dedos pelos cabelos e soltou o ar com força, ele riu em segredo.
       — Está bem, Bradford. Mas eu e você estaremos ocupados demais para isso. Vou mandar Busche e Pete para dar uma olhada. A que distância o barman disse que o solar se localiza?
       — Cerca de dez milhas, rio abaixo.
       — Os rapazes deverão ir até lá antes do anoitecer e esperar à margem do rio. Se não estiverem no local combinado quando passarmos, seguiremos sem eles.
       Hawke concentrou a atenção no mapa, sem ouvir a porta da cabine se fechar atrás de Bradford. Abriu o diário de bordo e fitou a página em branco, incapaz de resumir os eventos daquele dia numa documentação de meros fatos.
       Sentia-se como se parte de si também tivesse morrido junto com Charles Leslie.
       O futuro o assombrava, escuro e incerto.
       Seu pensamento deteve-se na tripulação do Sans Felicia.
       Com um suspiro, recostou-se na cadeira. Estava na hora de voltar para casa. Seus homens mereciam isso. Ele próprio merecia assentar os pés em chão firme.
       
       
       Capítulo II
       — Capitão! Um barco da Marinha inglesa se aproxima da baía!
       Hawke observou a pequena embarcação e friccionou a nuca com a palma da mão.
       Passara o dia todo ajudando os homens a carregar o navio com suprimentos, enquanto Bradford supervisionava a armazenagem do tabaco contrabandeado. O produto foi acondicionado em barris e escondido em compartimentos secretos debaixo da cozinha.
       Estavam prontos para partir quando Hawke descobriu que havia inúmeros barris de tabaco em meio aos mantimentos. Busche e Pete, na pressa de saírem para o Solar Leslie, não tomaram o cuidado de verificar o conteúdo dos tonéis, e os engradados tiveram de ser abertos e conferidos um a um, atrasando a partida.
       Os ouvidos de Hawke ainda ardiam com os gritos do chefe da galera, apressando os marujos.
       Ele apanhou o telescópio e perscrutou os arredores. Ainda havia tempo para fugir sem que fossem abordados pelo barco inglês, concluiu.
       Deveria ter deixado Busche e Pete para trás há muito tempo, refletiu. Talvez aquela noite oferecesse a oportunidade ideal para isso.
       — Vamos zarpar, Bradford — anunciou, guardando o telescópio. — Quero estar em mar aberto antes do amanhecer. Não podemos ser abordados pela Marinha inglesa.
       — E quanto a Pete e Busche?
       — Nós os apanharemos ao descermos o rio.
       — Mas vamos sair antes do horário combinado, capitão. E se não tiverem tempo de chegar à margem do rio?
       — Não me peça para esperá-los. Eles sabem que deverão estar a postos quando o Sans Felicia passar. E não me culpe, Bradford. A idéia de visitar o Solar Leslie foi sua — acusou, mal humorado.
       Hawke se posicionou à frente do timão, observando os homens da tripulação reunidos no tombadilho superior. A atenção deles se concentrava no barco com a bandeira da Inglaterra hasteada no mastro principal.
       Ele analisou as marcas de sofrimento e privações nos rostos cheios de esperança, enviando-lhe um pedido silencioso para que partissem, e assentiu.
       — Levantar âncora! — ordenou, sob os gritos entusiasmados da tripulação. — E, se aqueles dois não estiverem esperando no local combinado, vou deixá-los para trás!
       
       
       Adrienne entrou no estúdio do avô e fechou a porta com um suspiro de alívio. Acendeu as velas do candelabro sobre a mesa e olhou pela janela.
       O navio Elizabeth estava ancorado e pronto para partir na manhã seguinte, e ela estaria a bordo.
       Seu plano lhe parecia perfeito! Vestida com o uniforme de Stacia, ninguém suspeitaria dela se fosse vista tarde da noite, atravessando o jardim. Carregava apenas o saco de viagem que fora de seu pai, com vestidos e roupas íntimas. Sabia que não seria fácil se privar do conforto que o lar lhe proporcionava, mas conseguiria sobreviver.
       Depois de se certificar de que apenas o silêncio a rodeava, depositou o candelabro sobre a escrivaninha e passeou os olhos pelas prateleiras, com intenção de escolher um volume para acompanhá-la na viagem.
       Seus dedos finalmente pousaram em um tomo fino, escondido entre os outros. Curiosa, ela o retirou da prateleira e o aproximou das chamas da vela.
       Verificou que era muito antigo, a julgar pelo tom amarelado pelo tempo. O nome gravado na capa desgastada havia se apagado, e não pôde determinar o título. Com cuidado, ela o abriu, e as páginas frágeis flutuaram, revelando seu conteúdo.
       Poesia, ela constatou com um sorriso.
       Um ruído no hall de entrada a sobressaltou, e ela fechou rapidamente o tomo. O solar recebera convidados de diversas colônias, para celebrar seu noivado com Jonathan. Muitos deles, moradores de terras distantes, ficaram para pernoitar no casarão.
       Preocupada que alguém tivesse perdido o sono e decidisse apanhar um livro para se distrair, ela correu para a prateleira de onde retirara o livro de poesias. Tentou colocá-lo de volta, mas notou que havia algo bloqueando o caminho. Ela deslizou o dedo pelo vão estreito entre os dois grossos volumes que o esconderam por muitos anos, e se surpreendeu ao tatear um objeto de metal que jazia ao fundo da prateleira.
       Aquele era o esconderijo perfeito para proteger um segredo, refletiu, intrigada. Puxou o artefato com a ponta dos dedos, contendo a exclamação de surpresa.
       Um anel! Ela sentiu o peso do metal frio na palma da mão. O brilho dourado reluziu à luz da vela, e ela arregalou os olhos diante do intrincado trabalho em pequenas pedras preciosas.
       Examinou-o com cuidado, e concluiu que pertencia a um cavalheiro. O mais curioso era que, apesar de ser uma fina jóia com acabamento impecável, a borda superior parecia ter se partido, revelando recortes pequenos e regulares.
       O eco de vozes cada vez mais próximo a assustou, e ela abriu a porta com vagar, espiando pela fresta. Dois homens sussurravam no hall de entrada, e ela espichou o pescoço tentando identificá-los.
       As sombras da noite não permitiram que discernisse a feição dos rapazes, mas havia algo na atitude deles que a assustou.
       — O que eu gostaria de saber é por que o capitão nos escolheu para vir aqui! — um deles reclamou, em tom arrogante. — Vasculhar os papéis de um homem morto me dá arrepios.
       Passos abafados na sua direção indicavam que eles pretendiam entrar no escritório, e ela prendeu a respiração, apavorada.
       — Busche! — O outro homem chamou. — Trate de se apressar! Não temos a noite toda.
       Com cautela, ela esticou o pescoço e observou os dois homens de compleição pequena vasculharem as gavetas do aparador da entrada.
       — Até agora, não encontramos nada! — o rapaz mais baixo sussurrou. — Vamos procurar no escritório. Bradford disse que é lá que se costuma guardar documentos.
       Apavorada, ela constatou que não conseguiria correr até a janela, apanhar a mala e fugir antes que os intrusos entrassem. Olhando ao redor, percebeu que a única possibilidade que lhe restava era se esconder sob a escrivaninha do avô.
       Sem pensar, ela colocou o anel e o livro de poesias no bolso do avental e enfiou-se sob o tampo da mesa no momento exato em que a porta se abriu.
       — Aqui está! — ouviu o homem chamado Busche exclamar. — Por sorte, alguém deixou um candelabro.
       — Ande logo com isso! O capitão disse que o Sans Felicia não vai nos esperar. Se ele passar pelo local combinado e não nos encontrar, ficaremos na colônia.
       — Pare de me apressar, Pete! Você está me deixando ainda mais nervoso.
       Adrienne se encolheu, petrificada ao ver a sombra alongada projetada na parede, revelando o perfil dos intrusos. Eles usavam calças largas, coletes e botas, e um deles trazia um lenço amarrado à cabeça. Uma onda de pânico cresceu em seu ventre. Definitivamente, aqueles dois homens não eram convidados do jantar de noivado!
       Ela apertou as pálpebras com força, esperando abri-las e descobrir que tudo não passara de um pesadelo.
       No entanto, a presença quente perto de si confirmou a realidade. Ao erguer as pálpebras, deparou-se com um par de olhos arregalados. Um dos rapazes, agachado a sua frente, a fitava com a mais pura perplexidade.
       — Pete! — ele sussurrou, assustado. — Pete!
       — O que foi?
       — Veja o que encontrei!
       Com um movimento ágil, ele estendeu o braço e tapou a boca de Adrienne.
       — Peço desculpas se a assustei, senhorita... — O rapaz puxou-a com gentileza de sob a mesa, mantendo a mão em sua boca. — Não pretendemos machucá-la.
       — Busche!
       Outro rapaz, franzino e assustado, surgiu em seu campo de visão. Coçou a cabeça, preocupado, e avaliou-a da cabeça aos pés.
       — Ela deve ser uma das serviçais da casa.
       Adrienne agradeceu secretamente por estar usando o traje de Stacia. Se aqueles dois malfeitores descobrissem quem ela realmente era, as conseqüências poderiam ser piores.
       — E agora? O que faremos?
       — Temos de amordaçá-la — o rapaz que usava lenço na cabeça afirmou. — Se ela gritar, poderá atrair a atenção dos patrões. Não podemos correr o risco de sermos apanhados.
       Ele retirou o lenço da cabeça e amordaçou Adrienne, deixando-a a ponto de sufocar. A seguir, olhou ao redor e notou a mala de viagem sob a janela.
       — Veja, Busche! Ela pretendia fugir!
       Os dois a encararam ao mesmo tempo, e ela assentiu com um gesto enfático da cabeça.
       — Vamos embora, Pete! Não há nada de importante aqui!
       — Espere um pouco, Busche. Não podemos deixá-la. Ela vai nos entregar!
       — Tem razão. Mas o que faremos?
       — É melhor levá-la conosco. Creio que ela não se importará, já que pretendia fugir desta casa.
       — O quê?! Levá-la para bordo do Sans Felicia? Pete, você perdeu o juízo?
       — Não temos escolha! Os rapazes deixaram o bote a nossa espera à margem do rio. Podemos mantê-la escondida sob o linóleo, e levá-la para bordo quando ninguém estiver por perto. Afinal, que mal ela poderá fazer?
       — Está bem, vamos levá-la. Nós a deixaremos em algum porto distante daqui, de onde não possa voltar para nos denunciar.
       Antes que Adrienne pudesse reagir, mãos pesadas pressionaram seus ombros, e ela se debateu, numa tentativa desesperada de se soltar. A última coisa que viu foi o mastro do navio de seu avô, tremulando a distância.
       
       
       Hawke abriu a porta de sua cabine com um suspiro de alívio. O Sans Felicia velejava livremente pelo rio James, a caminho do oceano Atlântico.
       Os primeiros raios de sol surgiam no horizonte, e a tripulação estava excitada com a chegada de Busche e Pete.
       Depois de navegar para uma distância segura, ele entregara o comando do navio para o primeiro imediato e apanhara o diário de bordo. Dedicara-se a documentar os acontecimentos do dia durante uma hora, até que a exaustão o impediu de continuar. Ele atravessou o corredor que levava a sua cabine, ansiando pelo conforto da cama.
       Abriu a porta e olhou para o catre com um sorriso de satisfação. Fazia dois dias que não dormia e necessitava de algumas horas de repouso.
       Ao se aproximar, o capitão estreitou os olhos, incerto sobre o que estava vendo. Incrédulo, esfregou as pálpebras, julgando estar tendo uma visão. Aproximou um passo e prendeu a respiração.
       Uma mulher... Havia uma mulher em sua cama!
       Hawke passeou o olhar pelas formas arredondadas e respirou fundo. Ela fora colocada com cuidado sobre os lençóis, e uma imensa mala jazia no chão, ao lado da cama. Longos cílios cerravam as pálpebras e as sobrancelhas espessas e negras, desenhadas em um arco perfeito, faziam contraste com a pele alva.
       Ele se demorou em avaliá-la, detendo-se na curva generosa do busto que arfava suavemente ao ritmo da respiração.
       Os traços delicados indicavam que não era uma mulher qualquer. Embora vestida com trajes modestos, típicos de serviçais, era evidente que se tratava de uma autêntica filha da aristocracia.
       O que aqueles dois haviam aprontado? Não havia dúvida de que Busche e Pete eram os responsáveis pela presença da mulher em sua cabine!
       Ele estivera no leme, ocupado em determinar o rumo da embarcação, e não prestara atenção quando encostaram o bote e subiram para o convés. Somente então a excitação dos homens fez sentido. Busche e Pete não eram tão populares a ponto de atraírem todas as atenções com sua chegada.
       Na certa, eles haviam contado com a ajuda de outros membros da tripulação para colocar a jovem a bordo, enquanto o distraíam com o relato sobre o resultado infrutífero da busca.
       — Inconseqüentes! — vociferou, irritado.
       Em breve, haveria um pai ou um marido furioso ao encalço dela!
       Fez menção de sair para chamar Bradford, mas hesitou. Na verdade, ele próprio fora o responsável pelo acontecido. Afinal, sabia o que esperar daqueles dois e, mesmo assim, os enviou numa missão delicada e perigosa.
       Recostou-se na escrivaninha, sem conseguir tirar os olhos da jovem. Os cabelos espalhavam-se sobre o travesseiro, numa cascata de mechas negras e brilhantes como a superfície do oceano na noite escura. Sem que pudesse se conter, aproximou-se para tocá-los, pousando os dedos sobre os cachos sedosos.
       Como se tivesse sentido o toque, Adrienne despertou lentamente do estado de inconsciência. A dor pontiaguda em seus ombros fez com que se retraísse. Sem abrir os olhos, esforçou-se para se lembrar dos últimos acontecimentos.
       Aos poucos, tomou-se consciente de que havia outra presença próxima de si. O aroma másculo de couro e maresia invadiu seus sentidos. As lembranças surgiram em uma série de eventos e ela abriu os olhos, assustada. Azuis. O homem que a observava possuía os mais profundos e brilhantes olhos azuis que ela já vira. Eram emoldurados por longos cílios negros, tão escuros quanto os cabelos.
       No momento suspenso entre o sonho e a realidade, Adrienne fitou-o em silêncio com a sensação de que uma estranha ligação os unia, despertando-lhe a certeza de que a simples presença daquele homem a protegeria de todos os perigos.
       A barba por fazer e os cabelos em desalinho o diferenciavam dos outros homens elegantes e civilizados que conhecia. A pele bronzeada emprestava-lhe a semelhança física com um marinheiro, mas o porte altivo e os traços marcantes do rosto viril indicavam que não era um homem comum.
       Um arrepio de medo percorreu sua espinha ao avaliar a expressão severa no rosto másculo.
       De súbito, o homem se afastou e atravessou o aposento. Abriu a porta com brusquidão e gritou por alguém chamado Bradford, voltando a se sentar na cama ao lado dela.
       Apavorada, ela cruzou os braços sobre o peito e se retraiu.
       — Você tem um nome?
       — A... Adrienne.
       Ela hesitou, incerta sobre revelar mais informações até que pudesse determinar a segurança de sua posição. Ao ver que ele continuava fitando-a em silêncio, ergueu o queixo e acrescentou:
       — Se está esperando por uma explicação sobre como vim parar aqui, ficará desapontado. Não tenho a mínima idéia!
       O homem franziu o cenho com interesse, mas não emitiu nenhum comentário. Quando Adrienne ouviu a agitação no corredor, virou-se para a porta e percebeu que não estavam sozinhos.
       Outro homem, alto e magro, permanecia parado à entrada. Os cabelos encaracolados caíam sobre os ombros, e as mechas prateadas se mesclavam aos fios loiros. Embora o rosto revelasse expressão mais branda que a do homem ao lado dela, ele carregava uma pistola presa à faixa amarrada na cintura. Um grupo de marujos se amontoava às costas dele, tentando ver o interior da cabine.
       — Capitão Hawke — o homem loiro anunciou sua presença.
       — Quero Busche e Pete aqui. Agora!
       Não! Aqueles nomes... Adrienne aprendeu a respiração. Eram os dois intrusos que a encontraram no escritório de seu avô!
       Observou-os entrar no quarto, cabisbaixos e apreensivos, como se estivessem caminhando para a forca.
       — Quero explicações — o capitão Hawke exigiu. — Presumo que vocês dois sejam responsáveis pela passageira clandestina.
       Os rapazes se entreolharam, hesitantes.
       — Quem é essa mulher, e o que está fazendo a bordo do meu navio?
       — Foi culpa de Pete, capitão!
       — Minha culpa?! Ora, seu...
       — Rapazes, por favor — Bradford interrompeu. — Acho que todos nós gostaríamos de saber o que está acontecendo. Vocês foram enviados para localizar documentos relevantes que pudessem ser do interesse do capitão, e, em vez disso, voltaram com uma... convidada.
       Ele sorriu com gentileza para Adrienne, e ela retribuiu.
       Hawke fuzilou seu primeiro imediato com o olhar, e se dirigiu aos marujos, esperando que falassem.
       — Vou explicar, capitão. — Pete deu um passo à frente. — Fomos para o solar, conforme o sr. Bradford nos instruiu, e ficamos escondidos no bosque. Tivemos de esperar até noite alta para não sermos vistos.
       — É verdade, capitão. O casarão estava repleto de convidados. Nós ficamos à espreita enquanto era servido um banquete de dar água na boca.
       — Poupe-me de seus comentários, Pete.
       Adrienne abaixou a cabeça o mais que pôde, receando que os rapazes se lembrassem de sua fisionomia. Afinal, como prometida de Jonathan, evidenciara-se na festa, e todas as atenções haviam se voltado para ela.
       Para seu alívio, os rapazes não associaram a imagem da jovem elegantemente vestida e penteada com a serviçal em trajes de algodão.
       — O pior foi que, depois do jantar, alguns convidados permaneceram no solar para o pernoite.
       — Sim — Busche acrescentou. — Mas, ao menos, isso facilitou nossa missão. Com tanta gente por perto, ninguém estranharia nossa presença.
       — Duvido muito — Hawke replicou, avaliando-os com desdém.
       — Quando todos foram dormir, nós entramos e começamos nossa busca. Pete teve a idéia de ir ao escritório. Não sabíamos que a garota estava lá. Ela nos viu e ficou apavorada... — Busche arriscou erguer os olhos na direção do capitão. — O senhor sabe o que poderia acontecer se fôssemos encontrados...
       — Ficamos com medo de que ela começasse a gritar — Pete avançou um passo. — Decidimos trazê-la para que não nos denunciasse.
       — Entendo. — Hawke acariciou a barba por fazer, passeando o olhar de um para o outro. — Não tomarei nenhuma medida por enquanto.
       Encarou Adrienne, encolhida na cama, e avaliou-a por um longo momento. Mas o inocente brilho das íris azuis revelava apenas perguntas, para as quais ele ainda não tinha as respostas.
       — Capitão, se me permite... — Ela deslizou para a beirada da cama e o encarou. — Seus homens me amarraram e me amordaçaram! Exijo que tome as medidas necessárias para puni-los!
       Hawke ergueu as sobrancelhas, surpreso.
       — Você é muito ousada para uma serviçal — comentou, desconfiado.
       Percebendo seu erro, Adrienne abaixou a cabeça e decidiu se calar antes que sua verdadeira identidade fosse revelada. Se aquele mercenário soubesse que era a neta de sir Alexander Montgomery, exigiria que ele pagasse resgate para devolvê-la. Além disso, seus planos de ir para a Inglaterra estariam irremediavelmente destruídos.
       — O que faremos com você? — o capitão indagou, como se estivesse pensando alto.
       — Podemos deixá-la no primeiro porto de Jamestown, capitão — Pete sugeriu.
       — Talvez seja uma boa idéia — Bradford concordou com ênfase. — Dificilmente uma serviçal do solar poderá nos fornecer informações relevantes.
       — Não. Seria muito arriscado voltarmos. Não podemos correr riscos desnecessários. Além disso, não creio que os patrões se importem tanto com seus serviçais a ponto de reclamarem o desaparecimento às autoridades.
       Adrienne percebeu que aqueles homens não tinham idéia de quem ela era, e uma nova esperança invadiu seu coração.
       — Ele está dizendo a verdade. Deixem-me no porto de Jamestown, e prometo que ninguém ficará sabendo do que aconteceu esta noite.
       — Fique quieta, senhorita, ou serei forçado a levá-la para o porão.
       Furiosa, Adrienne se levantou de um pulo e encarou o capitão.
       — Exijo que me deixem no porto imediatamente!
       De súbito, uma explosão soou a distância, seguida pelo tumulto de vozes no tombadilho.
       — Capitão! Três navios ingleses se aproximam, e atiraram em nossa bandeira!
       Hawke praguejou em voz baixa e se voltou para o primeiro imediato.
       — Eles devem ter nos seguido quando descemos o rio.
       Adrienne se sentiu grata pela interrupção, arrependida de sua audácia. No entanto, a agitação dos homens no convés confirmou suas piores suspeitas.
       — Vocês são piratas!
       Bradford enviou um olhar significativo ao amigo, mas foi o capitão Hawke quem replicou. Voltou a se aproximar da cama, tão perto que ela podia sentir a respiração quente acariciar-lhe a pele.
       — Cavalheiros da fortuna, senhorita. É assim que prefiro que nos denomine.
       A sensualidade no tom de voz provocou uma contração no ventre de Adrienne. Ele apoiou as mãos na cama, ao lado de seus ombros, e se aproximou ainda mais.
       — E, se eu fosse você, trataria de utilizar o mais temeroso respeito ao se dirigir a mim. É a única forma de garantir a segurança de sua posição aqui.
       E o capitão saiu, gritando ordens para a tripulação. No momento seguinte, a cabine estava vazia.
       
       
       Capítulo III
       Adrienne permaneceu imóvel por um longo tempo, apavorada com o tumulto no piso superior. Aproximou-se da escotilha e avistou ao longe os navios ingleses que seguiam a embarcação pirata.
       Uma onda de esperança aqueceu seu peito. Quando os ingleses fizessem a abordagem, eles a encontrariam e a levariam para casa.
       Animada com a possibilidade, ela se sentou no leito. Só lhe restava esperar. Somente então ela olhou ao redor, e se admirou com o luxo do aposento.
       A imensa cama que ocupava um dos cantos fora coberta com fina colcha de renda branca, e os lençóis alvos e perfumados eram um convite para o repouso. A mobilia de madeira nobre e os tapetes do Oriente indicavam o bom gosto do capitão. A um canto, um pequeno nicho era usado como lavatório, e diversos produtos de higiene pessoal estavam dispostos sobre o toucador com tampo de mármore.
       Ela se deteve na imponente escrivaninha ocupando o centro da cabine. Era ali que o capitão traçava a rota do navio e planejava os ataques às naus desavisadas que cruzavam seu caminho.
       Um arrepio de pavor fez com que se encolhesse. Nunca poderia imaginar que sua aventura tomasse aquele rumo! E o pior era que o Elizabeth saíra horas atrás, a caminho da Inglaterra, e era tarde demais para partir a bordo do navio do avô.
       Outro estrondo cortou o ar, e o tombadilho tremeu com o impacto. Levantando-se de um pulo, ela espiou pela escotilha, e reconheceu a bandeira vermelha e azul tremulando sobre o mastro. Reconheceu a nave que patrulhava o rio James, comandada pelo capitão Roberts, e rezou para que não desistisse de perseguir o pirata inglês.
       Porém, a caravela do capitão Hawke entrou em águas profundas e ganhou velocidade, capturando o poder do vento, seguindo para mar aberto.
       Enquanto observava, Adrienne pressionou as palmas das mãos contra o vidro, como se tal gesto pudesse deter o movimento da embarcação.
       Suas súplicas foram em vão. Aos poucos, a nave britânica se perdeu na distância. Desolada, voltou a se sentar, aterrorizada ao pensar em seu futuro. Cativa de piratas, ela estava sendo transportada para algum porto desconhecido... Como poderia escapar?
       E, como se não bastasse, a simples presença do capitão provocava-lhe arrepios!
       Aqueles olhos... Eles pareciam atravessar sua alma! E o pior era que, ao mesmo tempo em que a apavoravam, as íris azuis despertavam-lhe a sensação de que nenhum mal poderia atingi-la enquanto estivessem pousadas sobre ela.
       Leves batidas à porta a distraíram dos pensamentos. Para seu alívio, um senhor de fisionomia gentil entrou na cabine empurrando um luxuoso carrinho de chá com a refeição.
       — Senhorita, minhas desculpas. Sou Artois, chefe da cozinha. — Ele fez uma mesura e abriu um sorriso amigável. — Eu estava cozinhando e ouvi o estrondo dos canhões. Tive de ajudar a carregar pólvora para o convés, e o jantar está atrasado.
       Ele se pôs a arrumar a mesa que ocupava um canto da cabine, e Adrienne arregalou os olhos ao vê-lo dispor a rica baixela de prata e a taça de cristal sobre a toalha de renda branca.
       — Por sorte, não fomos atingidos desta vez — o cozinheiro dizia, alheio ao espanto dela. — Sente-se, senhorita. Deve estar com fome.
       Ela obedeceu, incapaz de resistir ao convite. Artois retirou as redomas que protegiam as travessas e sorriu com orgulho.
       — Temos caldo de mariscos, lagosta e risoto de camarão.
       — Oh! Parece delicioso!
       Ela avaliou a quantidade de comida, certa de que era demasiada para apenas uma pessoa.
       — O capitão vai se juntar a nós?
       — Não. Você está sob meus cuidados.
       O suspiro de alívio com que ela recebeu a notícia fez o cozinheiro sorrir.
       — Não se deixe impressionar pelas aparências, senhorita. O capitão é o homem mais justo e generoso que conheço.
       — É difícil acreditar. Para mim, ele parece ser o homem mais feroz e implacável do universo! — Ela provou uma colherada do caldo e fechou os olhos, deliciada. — Isso está maravilhoso!
       — Obrigado, mademoiselle — o cozinheiro agradeceu, vaidoso.
       Ele se recostou à escrivaninha, e sorriu satisfeito ao vê-la comer com apetite.
       — Diga-me, Artois, por que o jantar foi servido na baixela de prata? — ela indagou casualmente, enquanto se servia de risoto.
       — É uma exigência do capitão, senhorita. Mesmo depois de meses no mar, quando não temos nada além de sardinha salgada e biscoito, ele exige que eu use a prataria.
       Adrienne saboreou lentamente a refeição, refletindo sobre o misterioso capitão Hawke. Definitivamente, havia sangue nobre correndo nas veias dele!
       — Está satisfeita, senhorita? — Artois se aproximou quando ela cruzou os talheres.
       — Oh, sim! Confesso que jamais esperaria uma refeição tão requintada a bordo de um navio pira... — ela se calou, arrependida pelo comentário.
       — Não somos piratas, mademoiselle. O capitão Hawke já foi corsário, anos atrás. Saqueava e pilhava navios espanhóis a mando do rei da Inglaterra, e repartia os lucros com a coroa — explicou com reverência. — Há oito anos, o capitão foi atingido pelo infortúnio, e deixou de se interessar pelo ouro.
       — O que aconteceu?
       — É uma longa história, mademoiselle — comentou com pesar, recolhendo as travessas. — Desde então, ele se tomou um homem amargurado e passou a viver no mar.
       — É por isso que sua cabine é tão luxuosa... — ela comentou para si. — É aqui que ele vive.
       — Sim. Mas tente descansar agora. Vou designar suas tarefas pela manhã.
       Ela o encarou, boquiaberta.
       — O... O quê?
       — Não se preocupe, Adrienne — Artois assegurou com um sorriso. — O trabalho pesado já foi distribuído para a tripulação.
       — Quer dizer que terei de... trabalhar?
       — Mais oui! Como espera pagar sua viagem?
       — Ouça, eu fui trazida para bordo por aqueles dois desmiolados, e não escolhi estar aqui! — ela se defendeu, furiosa.
       — Estou curioso para saber o que vai acontecer a Busche e Pete, depois que o capitão encontrar um castigo à altura — o cozinheiro comentou com uma risada, ignorando os protestos de Adrienne.
       Ao perceber que não teria saída, ela apoiou o rosto nas mãos e suspirou.
       — E quanto ao capitão? — indagou, sem conter a curiosidade. — O que ele disse sobre minha presença na embarcação?
       — O capitão Hawke disse apenas que você deve permanecer na cabine dele até segunda ordem. Ao menos, estará protegida da curiosidade da tripul... Mon Dieu! — gritou de súbito, fazendo com que Adrienne desse um pulo na cadeira.
       — Artois, você quer me matar de susto? — ela reclamou, recompondo-se. — O que aconteceu?
       — Não há sabão nem água limpa no lavatório! O capitão ficará furioso se souber! — Colocou apressadamente as travessas sobre o carrinho. — Voltarei em breve, senhorita.
       Sozinha na cabine, Adrienne se encolheu na cama. A tensão do dia a deixara exausta. Isolada da civilização, ela perdeu a última esperança de ser resgatada pelas naves inglesas e viu seu futuro se distanciar com o vento.
       E o pior era ter de se submeter às ordens do capitão Hawke. Enquanto estivesse no mar, ele possuía controle absoluto sobre a embarcação e sobre ela própria.
       Tal pensamento a irritou, mas não havia saída.
       Era óbvio que o capitão considerava sua presença inconveniente, mas não podia culpá-lo. Afinal, ele não planejara ter uma serviçal a bordo.
       Com um suspiro, ela se recostou nos travesseiros e colocou as mãos sobre o colo. Foi então que sentiu o volume saliente no bolso do avental, e lembrou-se dos objetos que guardara antes de ser raptada.
       Apanhou o anel e olhou ao redor, procurando o melhor lugar para escondê-lo. Sem encontrar nenhum local seguro, decidiu mantê-lo preso à corrente de ouro que não tirava do pescoço desde que o pai lhe dera, antes de partir para a Inglaterra.
       Satisfeita com a solução, ela apanhou o livro de poesia e passou a folheá-lo. Descobriu que se tratava de uma coletânea de poemas escritos por diversos membros de uma mesma família, e cada verso datava de períodos diferentes.
       Deteve-se na data ao final da última página, com uma elegante assinatura sobrescrita. Nobre Valcon, Warrick. Outono de 1566.
       Na certa, seu pai guardara o livro ao longo dos anos, consciente de seu valor para a família.
       Segundo Charles Leslie, seus ancestrais haviam se estabelecido no condado inglês de Warrick por sucessivas décadas, expandindo seus territórios. Ela lembrava com detalhes das histórias que o pai lhe contara na infância, quando a colocava na cama para dormir. Ouvia, fascinada, as histórias que retratavam bravos lordes e elegantes damas.
       Durante o século XIV, ao voltarem para casa depois das batalhas de Crecy e Poitiers, os fidalgos descobriram que seu território passara a ser controlado por um poderoso barão. E foi por isso que seu pai nunca pôde retomar ao castelo de Warrick, onde nascera.
       Adrienne fechou livro e encostou a cabeça no travesseiro.
       Eu conseguirei chegar ao castelo, papai, pensou com esperança.
       Ela fechou os olhos e seu peito se oprimiu ao pensar que Jonathan Culverwell estaria a sua espera quando voltasse para a colônia. Evitando pensar no assunto, ela se acomodou no leito e fechou os olhos. As reflexões sobre Jonathan deram lugar à imagem do rosto moreno e dos olhos tão azuis quanto as águas do mar que a rodeava.
       
       
       — Ela se foi!
       Sir Alexander empurrou a cadeira com violência, e o som pesado encheu o silêncio que se seguiu.
       Jonathan Culverwell se manteve parado diante dele, apertando as mãos num gesto nervoso.
       — Não sei o que fazer, senhor.
       O nobre fidalgo avaliou o rapaz sem evitar um suspiro de desdém. Aquele jovem mimado estava longe de ter alguma ação efetiva que lhe trouxesse a neta de volta!
       Contrariando a postura de retidão e polidez que sua posição exigia, sir Alexander praguejou, irritado. Encontrara as janelas do escritório abertas, embora nada estivesse faltando. Então, procurou pelo anel que seu genro havia escondido, anos atrás, e soltou uma exclamação indignada ao perceber que não estava lá.
       — O que faremos? — Jonathan repetia, confuso. — Fui com as serviçais até o quarto de Adrienne e elas notaram a falta de quatro vestidos.
       Sir Alexander observou o pânico nos olhos do rapaz. Voltou o rosto e avistou o mastro do Elizabeth a distância. Claro! Ela fora para a Inglaterra.
       — Vou partir imediatamente — anunciou com firmeza.
       — Senhor! Não pode deixar Adrienne.
       — Um dos convidados do jantar de ontem comentou que viu o Sans Felicia ancorado em Jamestown... — murmurou para si, como se estivesse pensando alto.
       Imerso em suas reflexões, ele não pôde perceber o súbito brilho do pânico nos olhos do rapaz.
       — Não acredita que...
       — Não sei o que Adrienne fez — interrompeu, irritado. — Tenho apenas algumas suspeitas. Você comentou que esteve com o capitão Hawke, comandante da embarcação. Ele disse quando partiria?
       — Nunca encontrei esse homem, sir Alexander — apressou-se em responder. — Meu agente esteve com ele para acertar a venda de um carregamento de tabaco. Eu estava muito ocupado com os preparativos para o jantar.
       — A essa altura, talvez o capitão Hawke esteja com uma passageira a mais em seu navio. — O nobre senhor passou a mão pelos cabelos, num gesto desesperado. — Meu Deus, Adrienne, o que você foi fazer?
       — Senhor, do que está falando?
       — Isso não lhe diz respeito, Culverwell.
       — Desculpe minha impertinência, senhor, mas ela será minha esposa!
       — Não tenho intenção de quebrar essa promessa. — Sir Alexander recolheu alguns documentos, preparando-se para partir. — Há mais pessoas envolvidas além de nós dois.
       — Insisto em acompanhá-lo, senhor. Quero ajudá-lo a encontrar minha noiva.
       Ele olhou para o rapaz, avaliando-o com olhar crítico. Que benefício teria ao incluí-lo na missão?
       De súbito, arrependeu-se por ter contratado a união de sua neta, e soube que teria apenas mais uma oportunidade para consertar a sucessão de erros que vinha cometendo.
       Quando encontrasse Adrienne, deixaria que ela própria decidisse sobre seu destino... Isto é, se a encontrasse.
       
       
       Adrienne se encontrava no convés, à frente do balde que Artois lhe entregara. O chefe da cozinha a incumbira de lavar o piso de madeira e saíra apressadamente, antes que ela tivesse tempo de perguntar sobre o destino da embarcação.
       Uma mecha de cabelos caiu sobre seus olhos, e tentou prendê-los, sentindo saudade das mãos habilidosas de Stacia.
       Inalou o aroma acre da solução de limpeza dentro do balde e fez uma careta. Seu pai havia lhe contado que a tripulação dos navios mercantes costumava usar a mistura de vinagre e água salgada para desinfetar o piso. Apanhando o esfregão com relutância, ela torceu o nariz e mergulhou-o no líquido.
       — Eu sonhava em ir para a Inglaterra e conhecer a terra natal de meu pai — resmungou para si. — Agora, olhe para mim! Trazida contra minha vontade para bordo de um navio pirata, e sendo forçada a trabalhar como uma escrava!
       E ela se pôs a esfregar o chão, convencida da importância de manter seu disfarce. Notou a presença do capitão e se lembrou do que ele lhe dissera na noite anterior. Não seria fácil assumir expressão de temeroso respeito, conforme fora sugerido, mas decidiu que não podia confrontá-lo até que pudesse escapar.
       O capitão permanecia na popa e mantinha os braços cruzados sobre o peito. O vento agitava os cabelos negros. Pete, parado à frente dele, parecia nervoso enquanto fazia uma narrativa solene, e Busche permanecia com os olhos fixos no chão, ao lado dele.
       Esquecida do trabalho, ela passou a analisar as feições do capitão. O estilo da vestimenta contrastava com todos os homens que ela já conhecera. Mas o mais curioso era que o capitão parecia infinitamente mais viril e atraente do que todos eles juntos!
       Sentindo o rosto queimar diante do pensamento libidinoso, ela mergulhou o esfregão no balde, tentando se concentrar no trabalho. No entanto, a presença daquele homem atraía seus olhos como um ímã. Alto e poderoso, ele comandava o navio com firmeza e segurança, e todos devotavam-lhe respeito e admiração.
       Ele voltou o rosto e os olhares se encontraram. Cumprimentou-a com leve inclinação de cabeça, e Adrienne deu-lhe as costas e se pôs a esfregar o chão como se sua vida dependesse daquilo.
       O capitão Hawke não conteve um sorriso. Aquela jovem o intrigava. Gostava da forma como os cabelos negros se alvoroçavam com o vento, caindo em cascatas sobre os ombros estreitos. Ela possuía compleição pequena e delicada, mas parecia capaz de enfrentar qualquer desafio.
       À medida que os dias se sucediam, sua admiração pela jovem serviçal crescia mais e mais. Ela se adaptara à vida no mar com facilidade, dedicava-se ao trabalho com afinco, e era respeitada por todos os homens da tripulação. Artois e Bradford costumavam passar longos períodos ao lado dela, e era comum ouvi-los rir e conversar animadamente. Afirmavam que era cortês e educada demais para a classe social que ocupava, e insistiam em que ele próprio se aproximasse dela.
       Desde que Adrienne passara a ocupar sua cabine, evitara entrar no aposento, e esperava que ela saísse sempre que alguma urgência o forçava a ir até lá.
       Mas talvez estivesse na hora de descobrir mais informações sobre a vida daquela jovem, concluiu.
       Acompanhou o movimento das mãos suaves enquanto esfregava o chão, e admitiu que seus amigos tinham razão: não haviam sido feitas para o trabalho pesado. Pequenas e delicadas, mais se pareciam com mãos de uma princesa. Sem que percebesse, pôs-se a imaginar como seria senti-las acariciando sua pele...
       Forçando-se a desviar os olhos, ele se voltou para o céu azul.
       Nunca acreditara em lendas do mar, mas seria capaz de jurar que Adrienne era uma sereia, enfeitiçando-o com sua beleza.
       Inquietando-se com a reação de seu corpo diante da presença daquela mulher, ele subiu pela escada de corda até o mastro mais alto, acomodando-se na gávea. Tomou posição e apanhou o telescópio, perscrutando a distância. Não viu nada além da vastidão do oceano, e respirou tranqüilo, certo de que estavam seguros.
       Apoiou-se no mastro e guardou o telescópio no bolso da calça, sem resistir ao impulso de observar a jovem serviçal sem que ela percebesse.
       Mas, para sua surpresa, ela deixara de lado o escovão e o fitava com um misto de admiração e medo.
       — Como pretende descer daí? — a voz chegou até ele, graciosa e feminina.
       Hawke se apoiou na estreita balaustrada de madeira, sorrindo ao vê-la recuar um passo, assustada. Com um movimento ágil, agarrou-se à corda e desceu, pulando ao lado dela com um movimento gracioso.
       Para seu desapontamento, a jovem serviçal o encarou com indiferença.
       — Então, é assim que desce do mastro. Entendi.
       Ele quase riu diante do fino senso de humor. Olhou por sobre os ombros dela para o trabalho que mal começara.
       — Termine depois — ordenou, sentindo súbita urgência de tê-la a seu lado. — Suba até a gávea comigo.
       — Não! Não posso. Minha tarefa... — e ela fez um gesto para as poças de água acumuladas no piso.
       — Está com medo?
       — Claro que não!
       Hawke observou com satisfação o mesmo olhar altivo e determinado que havia admirado na noite em que ela fora encontrada em sua cabine.
       Ofereceu-lhe a mão e percebeu que ela ficara tentada a aceitar seu convite. Quando estendeu-lhe os dedos, ele fechou-os em uma armadilha, sentindo a textura e o calor da pele acetinada.
       — Não é seguro — ela balbuciou, receosa.
       — Confie em mim.
       Adrienne arqueou as sobrancelhas, e os olhos azuis refletiram inocência quase infantil. Sem conseguir explicar o que estava acontecendo, Hawke sentiu o coração disparar no peito, da mesma forma que acontecera anos antes, quando se apaixonara.
       — Adrienne.
       O nome escapou de seus lábios como uma doce melodia. Com um sorriso, ela estendeu o pé para colocá-lo com cautela no primeiro degrau da corda amarrada ao mastro.
       Observou-a se movimentar com agilidade na direção do topo, imaginando se a magnífica vista a afetaria da mesma forma que fizera com ele.
       Ele recuou um passo. Dali, a vista não era menos interessante... Admirou a renda branca dos saiotes e a gentil curva do tornozelo enquanto ela subia com confiança crescente.
       Ao chegar à metade do caminho, Adrienne fez uma pausa e olhou para baixo.
       — O que está esperando?
       Hawke se agarrou à corda e subiu com agilidade, alcançando-a num piscar de olhos. Ajudou-a a subir na gávea e saboreou a expressão enlevada no rosto de traços perfeitos. Sem dizer nada, ela passeou o olhar pela imensidão azul, inebriada pela beleza a sua volta.
       Por um momento, com aquela mulher a seu lado, Hawke tornou-se o homem que fora no passado. Jovem, faminto pelo futuro, como se estivesse na torre mais alta de seu castelo.
       Passeou os olhos pelas águas serenas refletindo a luz do sol e ouviu a melodia ritmada das ondas contra o casco do Sans Felicia.
       — É reconfortante ficar aqui — disse por fim.
       Os raios do sol iluminaram o rosto adorável quando se voltou para ele.
       Sim, era reconfortante, pensou. Fazia muito tempo que não tinha aquela sensação, e sabia que era propiciada pela presença daquele homem. Desejava saber mais a respeito do perigoso capitão que atravessava os mares e deixava uma reputação atrás de si que despertava, ao mesmo tempo, fascínio e terror.
       Ela seguiu seu olhar para o ponto em que o oceano se encontrava com o horizonte, dissolvendo-se nas nuvens do céu.
       Havia mais a respeito dele do que se discutia em sussurros escandalizados nas elegantes mesas de jantar...
       — De acordo com a mitologia grega, Alcione, filha de Éolo, afogou-se ao saber da morte de seu amado. — Ele apontou para o bando que cruzava o céu. — Renasceram na forma de pássaros com o poder de acalmar o oceano.
       Encantada, Adrienne estreitou os olhos e viu as aves sobrevoando a embarcação.
       — Como sabe disso?
       — Aprende-se muito quando se vive no mar.
       — Você sempre quis viver no mar?
       — Quando eu era criança, sonhava em viajar, conhecer terras distantes. Paris, Veneza, Roma... — Ele sorriu pela primeira vez desde que ela o conhecera. — E foi o que fiz no começo da juventude. Bradford sempre me acompanhou, como tutor e amigo, até que eu passasse a viver no mar.
       — Nunca voltou para casa?
       — Casa... — ele riu. — Nem sei mais o que é isso! Mas tenho pensado em voltar, mesmo sabendo que não vou encontrar paz quando lá chegar.
       — Está distante há muito tempo?
       — Há uma vida.
       Ela colocou de lado as centenas de perguntas que gostaria de fazer.
       — Eu nunca me afastei do Solar Leslie. Imagino que você deva ter visto muitas terras belas e misteriosas em suas viagens.
       — Sim. Vi a muitas coisas belas...
       Adrienne prendeu a respiração. De súbito, percebeu que ele estava perto demais... Seu coração começou a bater desenfreado, e ela fugiu dos olhos azuis pousados sobre si.
       Esticou o pescoço para observar a embarcação distante que surgia no horizonte.
       — Aquele não é um navio inglês? — Ela protegeu os olhos com a mão, tentando identificar a embarcação. — Talvez o capitão Roberts tenha nos seguido.
       — É um galeão espanhol — Hawke afirmou.
       Agradecendo secretamente pela interrupção, ela tentou se manter o mais distante possível, antes que cedesse à tentação de se atirar nos braços dele.
       — A vida no mar não reserva somente beleza — o capitão comentou com pesar. — Vi navios repletos de escravos trazidos da África, homens e mulheres vendidos como mercadoria barata, e embarcações com o convés repleto de corpos.
       Ela sentiu um arrepio ao imaginar a cena, e se lembrou das histórias que Stacia contava. Reprimindo a tristeza, se apressou em mudar de assunto.
       — Por que um galeão espanhol estaria navegando por aqui?
       — A sede de vingança conduz até mesmo o mais cauteloso dos homens a enfrentar todos os perigos — foi a resposta enigmática.
       — O que quer dizer?
       Hawke levou alguns segundos para responder, como se estivesse indeciso em dizer a verdade.
       — Eu conheço aquele galeão.
       — Trata-se de algum inimigo?
       — Receio que sim — ele disse com vagar. — Infelizmente, não temos poder de decisão sobre a escolha de nossos inimigos.
       
       
       Capítulo IV
       Ao anoitecer, Adrienne permanecia com o rosto colado à escotilha, na esperança de avistar algum navio. Ela repetia o mesmo ritual desde o primeiro dia em que fora levada para a embarcação. Permanecia com o olhar perdido no horizonte, até que a paisagem fosse tragada pela escuridão.
       A esperança de fugir do Sans Felicia se transformara em um fio tênue, mais frágil a cada dia que passava.
       Para piorar, os momentos que compartilhara com o capitão Hawke na gávea, naquela tarde, provocaram verdadeiro furor na tripulação. Sentia os olhares sobre ela, sugerindo que sua presença significasse mais do que uma série de erros que a levaram até lá. Eles pareciam cautelosos, como se identificassem necessidade de protegê-la, e, ao mesmo tempo, excitados e esperançosos. Bradford havia comentado, dias atrás, que o capitão precisava de uma mulher que o amasse de todo coração e o fizesse esquecer as amarguras que a vida lhe impusera.
       Sentou-se na cama e retirou os sapatos. Teria insinuado que essa mulher poderia ser ela? Seria esse o desejo da tripulação, que ansiava pela felicidade do líder que tanto venerava?
       A simples possibilidade deixou-a sem ar.
       Evitando pensar no assunto, ela se dirigiu ao lavatório. Artois havia deixado água, sabão e toalhas sobre o aparador, como fazia todas as noites. Aproveitando cada momento da rara privacidade, ela desabotoou o vestido e umedeceu a toalha, deslizando-a pelo colo.
       De repente, percebeu a presença de alguém, e cruzou os braços sobre o peito.
       — Você não costuma bater à porta? — censurou, fechando às pressas o vestido.
       — Não tenho de bater. — O capitão Hawke entrou sem a menor cerimônia. — Esta ainda é a minha cabine.
       Ele estava vestido para o jantar, trajando casaco azul-marinho, com filetes dourados sobre os ombros e punhos, e camisa impecavelmente limpa. Finas botas de couro e calça engomada completavam o traje. Penteara os cabelos e se barbeara, e uma nuvem de perfume amadeirado o envolvia.
       Adrienne prendeu a respiração, surpresa com a metamorfose que transformara o rude pirata em um cavalheiro.
       — Decidi jantar na cabine. Gostaria de me acompanhar?
       — Creio que não seria adequado ficar sozinha com um homem.
       — Você não tem muita escolha. Pode ficar sozinha aqui comigo, ou sozinha com o restante da tripulação.
       Ela fingiu ignorar o brilho divertido nas íris azuis.
       — Saiba que estou noiva e vou me casar.
       — É mesmo? Conte-me sobre o modelo de virtude e coragem que será seu marido — Hawke provocou com ironia. — Onde ele estava quando meus homens a encontraram no solar, pronta para fugir?
       Para alívio de Adrienne, Artois entrou na cabine carregando o carrinho com o jantar. Cobriu a mesa com toalha branca e guardanapos, e arrumou-a com talheres, pratos e taças para dois, sob olhar atento do capitão. Depois de colocar as travessas com a refeição, despediu-se com uma reverência e saiu.
       Hawke puxou uma cadeira, indicando que Adrienne se sentasse, e se acomodou a sua frente.
       — Então, quem é seu noivo? — insistiu, servindo-a de vinho.
       — Você não o conhece.
       — Como sabe?
       O desafio na voz a instigou a responder.
       — Está bem, vou falar. Meu noivo é Jonathan Culverwell.
       — Sim, eu o conheço.
       — Mas como...
       — Ele tentou lucrar mais do que devia ao vender o estoque de tabaco que estou carregando. — Hawke afirmou com convicção. — Você sabia que seu pretendente é um explorador? Além disso, ele agiu ilegalmente ao vender a produção sem pagar os impostos da coroa.
       — Estou perfeitamente ciente — Adrienne mentiu, abaixando o rosto para que ele não a visse corar.
       Observou o capitão destrinchar a galinha assada, para colocar uma generosa porção em seu prato. Forçando-se a relaxar, ela apanhou os talheres e experimentou uma fatia do suculento peito. Delicioso!, concluiu, percebendo que estava faminta.
       Hawke a observava, admirando a perfeição com que manejava os talheres.
       — Você não vai comer? — ela indagou, sorvendo um pequeno gole de vinho.
       — Sim. Depois das privações que passei durante as viagens através dos continentes, aprendi a valorizar uma boa refeição.
       Surpresa com a inesperada atitude do capitão, Adrienne se valeu de sua disposição para conversar e arriscou-se a esclarecer a pergunta que a intrigava:
       — E o que o levou a viver no mar?
       O capitão sorveu um longo gole de vinho enquanto parecia refletir sobre o que dizer.
       — Eu comandava um galeão inglês, como corsário do rei. Passei muitos anos no mar, saqueando e enriquecendo ainda mais a realeza. Nunca soube que meus bens estavam em risco até voltar para Warrick, pronto para me assentar e continuar o nome da minha família com a mulher que estava prometida desde meu nascimento. — Ele fez uma pausa, deixando evidente a carga emocional despertada pelas lembranças. — Encontrei meu pai à beira da morte e destituído de sua fortuna.
       — E quanto à mulher? — Adrienne indagou, forçando a manter o tom casual.
       — Ela se foi — o capitão respondeu simplesmente.
       Sem saber por que, Adrienne sentiu um imenso alívio ao ouvi-lo.
       Ao terminarem a refeição, ela se levantou e caminhou até a escotilha, admirando o céu coalhado de estrelas.
       Sentiu a presença quente próxima de si, mas permaneceu impassível.
       — Então, você perdeu sua fortuna e a mulher que estava prometida... — comentou, com a intenção de quebrar o clima tenso que a presença dele provocava. — Foi por isso que se tornou pirata?
       — Nunca fui pirata. Apenas jurei encontrar o homem que destruiu meu pai e me deixou sem os meios para reclamar minha herança — ele prosseguiu, circunspecto. — Ao menos, era o que estava destinado a fazer quando cheguei em Jamestown.
       — E você o encontrou?
       — Sim, eu o encontrei. Mas ele estava morto.
       — Oh...
       Ela percebeu a tensão que pairava no ar, mas não sentiu medo. Ao contrário, sensibilizou-se ao pensar na dor e angústia de um sonho perdido na crueldade do destino.
       Pousou a mão sobre a dele, num gesto impulsivo.
       — Não deixe que as ilusões desapareçam — murmurou, perdida nas íris azuis.
       — Sonhos não são para todos.
       Adrienne abriu a boca para protestar, mas, de súbito, viu-se capturada pelos lábios exigentes, e fechou os olhos ao sentir o contato cálido.
       — Capitão! Por favor... — balbuciou, recuando um passo.
       Emoções inomináveis a inundaram, provocando-lhe uma vertigem. Incapaz de objetar, não reagiu quando braços fortes a enlaçaram pela cintura.
       Lentamente, Hawke traçou com a ponta do dedo o contorno do rosto delicado, detendo-se no queixo. Fez com que ela o fitasse e sorriu ao ver o brilho do desejo refletido nos olhos inocentes.
       — Nicholas — ele murmurou com voz rouca. — Meu nome é Nicholas.
       Adrienne sentiu-se naufragar nos olhos azuis.
       Entreabriu os lábios ao contato macio da boca sobre a sua. Nunca havia beijado um homem, e deixou que o desejo que pulsava em suas veias conduzisse seus movimentos.
       Era como se aqueles lábios completassem os seus.
       Aninhou-se na rigidez do corpo viril, num abraço envolvente, e experimentou o deleite de sentir sua feminilidade desabrochar.
       Quando ele se afastou, Adrienne levou alguns segundos para abrir os olhos e despertar daquele sonho.
       Hawke a fitava, com respiração ofegante.
       — É melhor que eu vá embora — murmurou, recuando um passo.
       Ela abriu a boca para falar, mas as palavras não vieram. Observou-o caminhar para a porta e a viu se fechar diante de si.
       Do lado de fora da cabine, Hawke se deteve com a mão na maçaneta. Respirou fundo, arrependido pelo seu ato. Jamais pretendera se envolver. Não possuía nada para oferecer a uma mulher, nem mesmo seu nome.
       Ele seguiu pelo corredor com passadas vagarosas. Sabia que, naquela noite, o sono não viria facilmente.
       
       
       — En garde! -
       Adrienne acordou com um sobressalto. Ainda inebriada pelo efeito provocado pelo beijo de Hawke na noite anterior, ela se levantou, atenta aos sons que a despertaram. Vestiu-se às pressas e subiu para o convés, acompanhando o eco do som metálico.
       Os rapazes da tripulação mal a notaram, tão interessados estavam na cena que se desenrolava no centro do aglomerado que se formara no tombadilho.
       O capitão Hawke e seu primeiro imediato encaravam-se em desafio, empunhando as espadas. Brados ruidosos vibraram no ar quando as armas se encontraram, numa feroz batalha individual.
       Adrienne recuou um passo. Observou com olhos arregalados enquanto as lâminas se encontravam, numa dança selvagem. Aos poucos, seu pavor se dissipou ao perceber que os gritos da tripulação eram de encorajamento. Os homens riam e gritavam, excitados, como se estivessem presenciando um jogo.
       Então, o que a princípio parecia ser uma luta mortal, revelou-se um divertido exercício. Ela observou o capitão, admirada com o grau de concentração que conseguia manter. Manejando a espada com graça e elegância, ele possuía a força e a determinação necessárias para sobrepujar o oponente.
       Num gesto involuntário, levou a mão à boca, relembrando os lábios firmes que a cobriram na noite anterior. Aquelas mesmas mãos que manejavam a espada a puxaram para perto, tocaram-na, a capturaram com desejo urgente.
       Enquanto assistia aos poderosos movimentos, uma onda de calor a invadiu. Recostou-se na amurada e permaneceu em silêncio, sem que conseguisse desviar os olhos do capitão.
       — Renda-se, Bradford!
       Mantendo o braço esquerdo às costas, Hawke movimentava o corpo para os lados, simulando o ataque.
       — Nunca!
       Bradford avançou, forçando-o a recuar até a proa. O grupo de rapazes os seguia, com gritos entusiasmados.
       Então, com um golpe ágil e preciso, o capitão jogou a espada do primeiro imediato para longe, e inclinou a cabeça com expressão de triunfo.
       — Se você continuar assim, terei de procurar outro oponente no futuro — provocou com um sorriso.
       — Sua memória está se deteriorando com a idade — o primeiro imediato respondeu de pronto. — Eu fui vitorioso na última vez em que me desafiou!
       — Ah! O riso de um tolo sempre precede sua queda!
       Antes de terminar a frase, Hawke girou a espada no ar e arremessou-a com precisão. O metal brilhante cortou o ar como um raio para se fincar no chão, entre as botas de Bradford. Num reflexo, o primeiro imediato projetou o corpo para trás e caiu, vendo-se face a face com a lâmina da espada.
       Adrienne respirou com alívio quando Hawke se aproximou e estendeu a mão para levantar o amigo.
       Gradualmente, o agrupamento se dissipou e os homens retornaram ao trabalho, até que ela percebeu ser a única que ainda permanecia na proa. Sem conseguir desviar os olhos da figura imponente do capitão, surpreendeu-se ao ver a confiança e amabilidade com que se dirigia à tripulação. O profundo respeito e admiração que os homens nutriam por ele era evidente.
       Consciente da presença de Adrienne desde o momento em que ela chegara ao convés, Hawke trocou algumas palavras com o primeiro imediato e guardou a espada. Percebera o intenso olhar pousado sobre si, e tal noção provocara-lhe emoções e sentimentos que julgara esquecidos.
       — Bom dia — ouviu Bradford saudá-la galantemente.
       — Bom dia.
       A voz aveludada soou como uma carícia para seus ouvidos. Ela sorriu, e Hawke foi tomado por uma súbita onda de ciúme.
       — Foi a mais admirável demonstração de destreza que já presenciei — ela elogiou com um sorriso. — Habilidades como essa devem ser muito valiosas em sua profissão.
       — Tem razão — Hawke comentou, sem resistir ao impulso de se aproximar. — O mar pode ser muito perigoso.
       — Especialmente para alguém incapaz de se defender — ela acrescentou. — Não concorda, Bradford?
       — Tem razão, senhorita.
       — Eu gostaria de aprender a usar uma arma — Adrienne comentou com os olhos brilhando de excitação.
       — Bem, eu... — O primeiro imediato olhou para o capitão num pedido silencioso de ajuda.
       — Definitivamente, não!
       — Por favor, ensine-me a lutar!
       — Não.
       Quinze minutos mais tarde, Adrienne se tornou a orgulhosa proprietária de um florete que Bradford apanhara no depósito de armas do navio.
       A bela peça, ornamentada com delicado trabalho lavrado no cabo de prata, era perfeita para uma moça. Hawke apenas aprovara que Adrienne a recebesse porque os gumes sulcados proporcionavam leveza e flexibilidade à lâmina, e não ofereciam grandes riscos ao manejo.
       Ao lado dela no convés, demonstrou com relutância como empunhar o espadim.
       — Segure com firmeza — instruiu, posicionando a mão sobre a dela para pressionar o cabo da arma.
       Adrienne relanceou o olhar para ele com expectativa.
       A inconfundível inocência nos profundos olhos azuis o fez se sentir velho e abatido.
       Aquele olhar o transportou através dos anos.
       Em sua mente, reviveu a cena que marcara sua infância. Vislumbrou o jovem rapaz manejando com dificuldade uma espada, com o rosto iluminado pelo brilho da esperança. O sol do entardecer atravessava as janelas da sala de armas, e ele dedicava-se ao exercício sem perceber o olhar atento e orgulhoso do pai. Alheio ao mundo ao seu redor, atravessou a sala lutando com um inimigo imaginário e chegou ao hall cujas paredes estavam recobertas por retratos de seus ancestrais.
       — O que faço agora?
       A voz de Adrienne tirou-o das recordações.
       Hawke demonstrou o primeiro movimento e ela praticou com graça feminina, alheia ao efeito devastador que provocava no capitão. Ele recuou um passo, tentando se afastar do efeito hipnótico, e dirigiu o pensamento para o sonho que o atormentara durante a noite.
       Encontrava-se no saguão do castelo, contemplando os retratos de seus ancestrais, que o fitavam com expressão grave.
       — Nicholas Valcon, você é o último — eles pareciam dizer. — É o último que carrega nosso sangue, e você falhou!
       As risadas de Adrienne o trouxeram de volta. Hawke passou a mão pelos cabelos, afastando o pensamento dos corredores sombrios do castelo para retornar ao convés ensolarado de seu barco.
       — En, garde! — ela gritou para ninguém em particular.
       Repetia o movimento, fazendo com que a lâmina percorresse um círculo gracioso no ar.
       A vida parecia ser uma aventura para aquela mulher, Hawke refletiu. Ela fora raptada de seu lar, transportada para um futuro incerto, e, ainda assim, continuava a sorrir.
       — Ótimo. Agora, vamos treinar o movimento de pulso.
       Um sorriso quase infantil curvou os lábios cheios, e Hawke quase não conteve um súbito desejo de torná-la para si e se perder nela, de corpo e alma.
       Forçando-se a se concentrar, instruiu-a com o empenho de um mestre dedicado, e observou enquanto sua discípula repetia o que acabara de aprender.
       — Então, o que acha? — ela indagou com expectativa.
       — Você tem habilidade natural para manejar uma espada.
       — Então, ensine-me tudo o que sabe!
       Hawke hesitou. Então, lentamente, saiu da sombria melancolia em que se encontrava para o círculo de luz que era Adrienne.
       
       
       — É o bastante por hoje — Adrienne disse com a respiração ofegante, abaixando o florete.
       Havia praticado com afinco por três semanas, nos intervalos do trabalho no convés, e se sentia pronta para a batalha.
       Para sua surpresa, encontrara Hawke esperando por ela na manhã seguinte à primeira lição, e as aulas haviam se repetido por todos os dias desde então.
       — Bradford, você está parecendo uma matrona queixosa! — provocou com uma risada. — A garota é mais um motivo para concluirmos nossos negócios em New Providence e voltarmos logo para casa. Temos de redobrar o cuidado daqui para frente. Estamos nos aproximando da costa da Espanha. Avise a tripulação para que esteja especialmente alerta.
       — Sim, senhor.
       O primeiro imediato fez menção de sair, mas se deteve à porta.
       — Capitão...
       — Está bem, Bradford. Vou conversar com Adrienne sobre nosso destino.
       — Não é sobre isso que quero falar, capitão.
       Um longo momento se passou até que ele reunisse coragem para tocar no assunto que o levara a procurar o amigo.
       — Gostaria de conversar sobre lady Felicia Carlyle. — enunciou com voz quase inaudível.
       — Felicia? — Hawke repetiu, surpreso por ouvi-lo mencionar a mulher que o dispensara sumariamente.
       — Sim. — Gotículas de suor banhavam a fonte do primeiro imediato. — Há algumas coisas sobre ela que você não sabe.
       — Muitas coisas devem ser esquecidas com o passado, e isso inclui lady Carlyle — Hawke sentenciou.
       — Mas há algo importante que você não sabe, e...
       — Não pense mais nisso, Bradford — Hawke disse sobre o ombro, esperando dispersar a angústia do rosto do homem. — Não há nada que eu precise ou queira saber sobre aquela mulher. O passado deve ficar para trás, meu amigo. Vamos nos concentrar no futuro.
       Nuvens acinzentadas encobriram o sol, numa fração de segundo. Voltando-se sem dizer mais nada, Hawke deixou o primeiro imediato no convés e saiu à procura de Adrienne.
       Bradford suspirou, angustiado com o segredo que oprimia seu coração. Receava pelo momento em que chegassem à Inglaterra e seu amigo recebesse o golpe fatídico da verdade. Temia pela reação de Hawke quando descobrisse que o homem que manchara sua reputação e tentara se apossar de suas terras era a última pessoa que ele poderia suspeitar: o pai de Felicia Carlyle.
       
       
       — Capitão! — Bradford chamou ao ver que haviam terminado o exercício. Adrienne se desculpou e saiu, deixando os dois homens a sós.
       — Estamos nos aproximando das Bahamas — o primeiro imediato disse com apreensão. — Sei que planeja navegar até as Bermudas, mas tenho um mau pressentimento quanto a essa viagem.
       — Entendo... — Hawke guardou sua espada na bainha, com expressão grave. — Trace o rumo para chegarmos a New Providence. Vamos vender o carregamento de tabaco, abastecer a nave e partirmos no mesmo dia.
       — Como quiser, capitão. Os rapazes estão ansiosos para voltar para casa. Com os lucros que conseguimos ao longo dos anos, seremos homens ricos quando chegarmos à Inglaterra, e foi você quem tornou isso possível.
       — Nem todo o dinheiro do mundo pode trazer de volta o que perdi — Hawke comentou em tom desolado. — O rei George I esperava que eu honrasse a promessa e providenciasse provas de que realmente sou o herdeiro de Warrick. Agora, nós dois sabemos que isso é impossível.
       — Talvez ainda haja alguma chance de negociar — o primeiro imediato tentou consolá-lo.
       — Só me resta tomar o castelo usando a força.
       — É impossível! Somente um tolo tentaria lutar contra o exército do rei.
       — Bradford, meu amigo, eu já fui chamado de tolo antes. Sim, talvez fosse tolo por ter se apaixonado, pensou. Mas os longos meses no mar haviam obscurecido sua razão. Ele voltaria com Adrienne a seu lado. Ela lhe pertencia e não a deixaria partir.
       — O que planeja fazer com a garota?
       — Adrienne?
       — Sim, quem mais poderia ser? — Bradford respondeu com uma risada. — A família dela deve estar preocupada, e os patrões procuram por explicação pelo seu desaparecimento. Quer que eu providencie para enviá-la para casa enquanto estivermos na ilha?
       — Não. Ela fica.
       — Hawke, não temos o direito de colocá-la em risco mantendo-a a bordo. Ao menos, conte a ela que estamos a caminho da Inglaterra, e deixe que decida se pretende seguir conosco.
       
       
       Capítulo V
       Adrienne não conteve a exclamação de êxtase ao mergulhar na banheira de água perfumada. Agradeceu secretamente a Artois por ter preparado seu banho e isolado o lavabo da cabine com uma cortina improvisada.
       Prendeu os cabelos e mergulhou até o pescoço, com um suspiro de satisfação. Fechando os olhos, ela tentou relaxar os músculos doloridos pelo trabalho pesado do dia.
       Não se importava de ter de limpar o convés. Na verdade, o trabalho a fazia esquecer as preocupações. Passava parte do dia ocupada com a limpeza, e reservava o tempo livre para as aulas de esgrima com o capitão.
       Ela estendeu a mão para apanhar a barra de sabão e esfregou-o vigorosamente na pele, como se pudesse retirar todos os vestígios de apreensão e dúvida. Ouvira Bradford e o capitão comentarem sobre seguir para New Providence, mas todos pareciam manter segredo sobre o destino final da embarcação.
       Percebeu que a porta da cabine se abriu, e o rangido das dobradiças foi seguido pelo som de passos.
       — Artois, serei eternamente grata por este banho! — ela gritou, certa de que se tratava do chefe de cozinha. — Estou no Paraíso!
       Hawke franziu o cenho. Reconheceu os sapatos de Adrienne e avaliou o lençol preso à abertura do lavabo. O chão estava recoberto por poças de água e um agradável aroma de sais de banho preenchia o ar.
       — Que diabos está acontecendo aqui? — bradou, arrancando a cortina com brusquidão.
       Os olhares se encontraram, e uma eternidade pareceu se transcorrer até que ela se recobrasse do impacto provocado pela presença viril.
       — Vá embora! — gritou, corando até a raiz dos cabelos.
       A expressão de fúria deu lugar ao mais puro encantamento quando Hawke se deparou com Adrienne na banheira. A única coisa que protegia sua nudez era a fina espuma à tona d'água.
       — Suponho que esteja tentando alcançar isto... — ele sussurrou, estendendo-lhe o balde com água limpa. — Precisa de ajuda?
       — Não! Vire de costas e feche os olhos.
       Ele obedeceu com relutância e cruzou os braços sobre o peito.
       — Tem certeza de que não precisa de ajuda?
       — Sim, certeza absoluta. Não preciso de nenhuma ajuda vinda de você.
       Hawke ouviu o ruído de água transbordando e sorriu quando algumas gotas espirraram em sua calça.
       — Por favor, dê-me algo para eu me enxugar.
       Ele olhou ao redor do quarto, sem avistar nada que servisse. Por fim, abriu o baú no qual guardava seus pertences e retirou um roupão bordado com o emblema de sua família. Mantendo os olhos fechados, aproximou-se da banheira e estendeu-o para Adrienne.
       — Obrigada — agradeceu com sinceridade.
       Ela vestiu a imensa peça e amarrou o cinto com firmeza.
       — Pode olhar agora. — Esperou que ele abrisse os olhos e estendeu o dedo na direção dele. — Como ousa! Que tipo de cavalheiro entra no quarto de uma dama dessa maneira?
       — Minhas qualificações como cavalheiro parecem estar sempre sendo questionadas por você. Mais uma vez se esqueceu, minha querida, de que esta é minha cabine.
       — O que poderia ser tão importante para que tivesse urgência de vir aqui?
       — Precisamos conversar.
       Adrienne prendeu a respiração. Talvez tivesse chegado o momento de Hawke lhe dizer que não poderia prosseguir viagem no Sans Felicia. Aonde quer que estivesse indo, preferia seguir com ele a voltar para a colônia.
       Aproximou-se da escrivaninha, sem se importar com as gotas d'água que caíam de seus cabelos.
       — Fale. Sou toda ouvidos.
       — Não antes de secar seus cabelos. Você está alagando a cabine!
       Ele apanhou uma toalha e se sentou à beira da cama, indicando que ela fizesse o mesmo.
       Envolveu os longos fios com a toalha, friccionando-os com energia.
       Adrienne fechou os olhos, enlevada com a inesperada atitude.
       — Assim está melhor — murmurou, mal contendo o desejo de beijá-la quando ela o encarou com um sorriso encantador.
       — Obrigada. — Ela se afastou, fitando-o com atenção. — Sobre o que quer conversar?
       — Adrienne, estamos a caminho da Inglaterra e...
       — Inglaterra? — ela quase gritou, eufórica. — Oh, capitão Hawke, não posso acreditar! É exatamente para lá que desejo ir! — Num gesto impulsivo, atirou-se nos braços dele e o abraçou com gratidão. — Ficarei eternamente agradecida se me levar até lá.
       Confuso com a reação inesperada, Hawke não soube o que dizer.
       — Bem, tenho de avisá-la que sua permanência a bordo pode trazer-lhe alguns riscos...
       — Estou disposta a enfrentá-los — interrompeu-o com firmeza.
       Hawke não conteve o sorriso diante da inocente determinação. Estendeu o braço para tocar em uma mecha de cabelos caída sobre o rosto delicado, e seu olhar pousou na corrente de ouro parcialmente escondida sob o decote do roupão. Sem conter o impulso, suspendeu-a e prendeu a respiração ao ver o anel pendurado a ela.
       — Onde encontrou este anel? — indagou, sentindo a pulsação se acelerar.
       — Estava escondido na biblioteca do solar, e o apanhei na noite em que fui raptada.
       Hawke se levantou, pondo-se a andar pela cabine.
       — O que houve? — Adrienne indagou, intrigada com a reação dele.
       — Como você deve saber, o exército do rei é enviado periodicamente para que as famílias jurem lealdade à coroa.
       — Claro. É uma velha tradição, mas ainda é levada a sério — Adrienne concordou, sem entender aonde ele pretendia chegar.
       — É essencial para a validade da cerimônia que os nobres assegurem seu direito ao título ostentando um anel reconhecido pelo próprio rei. O ouro é necessário para manter as terras, mas sem um título...
       — Um homem não é nada — ela completou.
       — Esse anel que você carrega é parte de uma coleção de peças heráldicas presenteadas a minha família pelo príncipe Philip VI. Um dos anéis deverá honrar a mão da esposa do nobre e o lorde deverá usar o outro. Juntos, os dois anéis formam a unidade que assegura ao possuidor o título de nobreza.
       — Oh... É por isso que ele parece ter sido recortado... — Adrienne se levantou e desabotoou o fecho da gargantilha. — Eu não sabia que lhe pertencia. Fique com ele.
       Ele apanhou a peça para recolocá-la na corrente e prendê-la ao pescoço de Adrienne.
       — Não importa mais. Sozinho, o anel não significa nada.
       — E quanto ao outro que o complementa?
       — Foi roubado, junto com outros artigos de suma importância para a família. Grande parte dos bens de meu pai havia se perdido quando voltei para casa.
       Adrienne conteve a respiração. O que aquela peça estaria fazendo na biblioteca de seu avô?
       Incapaz de encontrar a resposta, ela enfiou a corrente sob o roupão e se recostou nos travesseiros com expressão pensativa.
       — Parece que alguém pretende destruir sua família — ponderou. — Por quê?
       Hawke teve dificuldade em se concentrar na resposta, tendo-a tão perto. Perdeu o olhar nas mechas aneladas dos cabelos negros caindo sobre os ombros.
       — Por quê? Essa é a questão.
       Ele se aproximou, incapaz de resistir.
       — Talvez a resposta esteja na Inglaterra.
       — Ou nunca possa ser revelada — ele completou.
       No entanto, nada mais importava, a não ser a mulher próxima de si. Perdido no brilho daqueles olhos, Hawke se esqueceu do resto do mundo. Com um gesto lento, aproximou-se e pousou os lábios na tez acetinada.
       — Hawke, eu não...
       — Shh... Não diga nada!
       Ele inclinou a cabeça e seus lábios percorreram a linha do pescoço. Com um gemido abafado, Adrienne arqueou o pescoço para receber os beijos.
       — Oh, Nicholas... — ainda murmurou, antes que fosse aprisionada em um beijo selvagem.
       Entreabriu os lábios e mergulhou em um sonho. Não protestou quando mãos firmes deslizaram o roupão sobre seus ombros, expondo seus seios.
       — Faça amor comigo, Hawke...
       — Você está segura de que é isso mesmo que quer?
       — Sim... Nunca tive tanta certeza!
       Então, fechou os olhos ao sentir a peça cair ao chão, expondo sua intimidade. Nunca ficara nua diante de um homem, e se surpreendeu com a naturalidade com que se comportou.
       Hawke tomou-a nos braços para colocá-la na cama, cobrindo-a de beijos.
       Mergulhando em uma espiral de prazer, Adrienne fechou os olhos, inundada pelo desejo crescente.
       — Eu nunca estive com um homem... — ela balbuciou ao sentir o peso do corpo viril sobre o seu.
       — Serei cuidadoso — ele prometeu, beijando-a. — Está com medo?
       — Sim... um pouco — Adrienne confessou.
       No entanto, a explosão de prazer que fez seu corpo tremer suplantou todas as dúvidas e temores, e ela o abraçou com força ao ser conduzida ao céu.
       — Agora, você é minha — Hawke murmurou com respiração ofegante.
       Adrienne fechou os olhos, saboreando as palavras. Sim, ela pertencia àquele homem, para toda a vida!
       Os ruídos no exterior da cabìne se intrometeram na intimidade, tornando-se mais altos, até que batidas violentas à porta romperam o silêncio da cabine.
       — Hawke, o que está acontecendo? — ela indagou, assustando-se.
       Somente então percebeu que o barco jogava com violência, castigado pela tempestade.
       O capitão se levantou, fazendo-a sentir um súbito vazio.
       — Fique aqui. Não saia desta cabine por nada — ordenou.
       Ao abrir a porta, deparou se com Bradford.
       — Capitão, venha logo! Precisamos do senhor imediatamente no convés.
       Hawke saiu, e deixou o coração atrás de si.
       Adrienne abraçou os joelhos, com o olhar perdido no quarto escuro. A chuva, que começara com gotas esparsas, havia se transformado em uma tormenta, mas nada parecia importar. Ela fechou os olhos. Se morresse naquele instante, estaria realizada. A intimidade que compartilhara com aquele homem proporcionara prazer capaz de superar todos os perigos.
       — Hawke... — murmurou, enlevada.
       Seu corpo ainda se lembrava das carícias que a levaram ao céu.
       De súbito, ela abriu os olhos, alarmada. As revelações do capitão acerca do anel que ela encontrara na biblioteca do avô reverberaram em sua mente.
       A conversa que tiveram antes de fazerem amor voltou a sua consciência com clareza espantosa. Então, o estado de graça em que se encontrava se transformou em puro terror.
       Adrienne pulou da cama e se vestiu às pressas. Apanhou a bolsa e despejou todo conteúdo sobre a mesa, até encontrar o volume que apanhara na biblioteca da noite de sua partida, o livro que escondia o anel heráldico que Hawke proclamava ser seu...
       Ela folheou as páginas, e seu olhar se fixou no nome escrito abaixo dos versos. Lentamente, traçou com a ponta dos dedos a caligrafia que revelava o autor: Lorde Nicholas Valcon, 1737.
       Aquele livro pertencia a Hawke!
       Aterrorizada, ela percebeu que encontrara a resposta para uma de suas perguntas: seu pai o havia roubado antes de partir para a colônia, e tornou-se óbvio que também se apossara do anel.
       Uma onda de culpa atravessou seu corpo. O homem que ela amava fora traído pelo seu próprio pai!
       Adrienne mergulhou o rosto no travesseiro, sem conter o pranto profundo.
       — Por que, papai? — perguntava-se, sem encontrar a resposta.
       Oprimida pela dor e pela decepção, ela se levantou e secou as lágrimas.
       — Tenho de abandonar este barco, antes que minha identidade seja descoberta — decidiu, com o coração apertado no peito.
       A tempestade continuava a castigar a embarcação, como um eco de seus próprios sentimentos.
       Não havia nada que pudesse fazer naquela noite.
       Voltando a se deitar, ela fechou os olhos. Por enquanto, só lhe restava esperar.
       
       
       Na manhã seguinte, o céu límpido e brilhante não mostrava o menor traço da tempestade que assolara a embarcação na noite anterior.
       Adrienne prendeu os cabelos em um coque apertado e se lavou com a água limpa da jarra que Artois deixara no lavatório. Depois de tanto tempo no mar, não havia água suficiente para lavar as poucas peças de roupa que havia levado, e se viu obrigada a vestir calças e camisas de Hawke.
       Ela dobrou o punho da blusa até a altura dos cotovelos e enfiou-a sob o cós da calça, apertando-a com firmeza na cintura. O cinto do capitão poderia dar duas voltas ao redor de sua cintura, e a barra da calça arrastava-se pelo chão. No entanto, Adrienne sabia que não estava em condições de se preocupar com a estética.
       Espiou pela escotilha e respirou aliviada ao ver que o barco se aproximava de uma baía de águas azuis. A ilha encantadora, banhada pelo sol, parecia ser o paraíso.
       No entanto, ela sabia que se tratava do refúgio de temidos piratas. New Providence fora estabelecida como território britânico antes que ela tivesse nascido.
       Ouviu o estampido a distância, e soube que o Sans Felicia era saudado com um tiro de canhão. A embarcação respondeu e o capitão pôde ancorar em segurança.
       Com o coração disparado no peito, colocou seus pertences na mala e saiu furtivamente da cabine. Espiou sobre a amurada do convés e avistou diversos botes carregados com frutas, vegetais e água fresca convergindo para a embarcação. Talvez, se tivesse sorte, pudesse entrar em um dos botes e esconder-se na ilha até que Hawke tivesse partido.
       Porém, seus planos foram frustrados antes mesmo de serem colocados em ação.
       Adrienne sentiu a mão forte em seus ombros e não precisou se voltar para saber quem era.
       — Pretende ir até a ilha?
       Ela apertou os dentes, furiosa por ter sido apanhada em flagrante.
       — Sim. Gostaria de fazer compras.
       — Diga-me o que quer e farei com que seja entregue na cabine.
       — Não, obrigada. Preciso de alguns itens íntimos que não cabem a um homem comprar.
       Hawke a fitou longamente, com um brilho de desafio no olhar.
       — O cais de New Providence não é local para uma mulher. Além disso, não podemos demorar. É perigoso para o Sans Felicia permanecer aqui. Volte para a cabine.
       Ela obedeceu, desolada. Colocou a mala no lavatório e caiu sobre a cama. Parecia que o destino, mais uma vez, traçara o seu caminho e não havia nada que pudesse fazer para alterá-lo.
       
       
       Horas mais tarde, Artois entrou com a bandeja do jantar. Somente então ela percebeu que anoitecera.
       — Onde está o capitão, Artois? — indagou, sentando-se para comer.
       — Estou aqui.
       Incapaz de resistir ao impulso, ela ergueu o rosto e os olhares se encontraram.
       Constrangida, Adrienne abaixou as pálpebras no mesmo instante. Sentia-se mal por se deparar com Hawke, sabendo da terrível verdade sobre seu pai.
       — Deixe-nos a sós, Artois — ele exigiu, sentando-se à frente dela.
       Perturbada demais para comer, Adrienne se pôs a mordiscar uma fatia de queijo. Sua consciência não permitia que o encarasse.
       — Hawke, precisamos conversar.
       — Sobre o que quer conversar?
       — Por favor, quero que me leve de volta para a Virgínia — implorou, em tom de súplica.
       — Impossível. Estamos a caminho da Inglaterra.
       Ela suspirou. Por que, de repente, a noção de que estava prestes a realizar seu maior sonho perdera o encantamento?
       — Tenho de voltar para casa — insistiu. — Eu não pertenço a este lugar.
       — Você pertence a mim, Adrienne.
       As palavras a aqueceram por dentro, mas o olhar possessivo sobre si a deixou ainda mais angustiada.
       — Você não é mais uma criança. Não pode se esconder por detrás das saias de sua mãe sempre que tiver medo.
       — Não estou com medo!
       — Então, por que quer voltar? Esqueceu-se de tudo que vivemos?
       — Sim — mentiu, sentindo o coração se esfacelar.
       Ela ergueu o queixo em desafio, lutando contra o desejo de revelar a verdade.
       Não, nunca esqueceria daqueles momentos! Amava aquele homem com toda força de sua alma!
       — Sei que não esqueceu, Adrienne. — Hawke pousou a mão sobre a dela. — Não tenha medo, meu amor. Saiba apenas que está comigo, e que eu a desejo mais do que tudo. Venha... Deixe-me mostrar o que nos espera.
       Mais tarde, Adrienne se recostou sobre o peito de Hawke enquanto lágrimas rolavam de seus olhos. Embora não fosse a responsável pela destruição da família dele, sentia-se culpada, como se o estivesse traindo.
       Girou o corpo e encostou a cabeça no travesseiro, ouvindo as ondas quebrando de encontro ao casco.
       A embarcação se afastara da ilha para ancorar em alto-mar. Todos dormiam, exaustos, sem perceber a aproximação do navio com uma bandeira negra hasteada ao mastro.
       A explosão de canhões cortando o ar a sobressaltou. Hawke deu um pulo na cama e se vestiu antes que os últimos vestígios de sono desaparecessem de seu corpo.
       — Hawke, o que foi isso?
       Confusa, ela se cobriu com os lençóis, incapaz de assimilar o som da violência crescente fora do santuário da cabine.
       U cheiro de pólvora ardeu em suas narinas, enquanto novas explosões ecoavam do lado de fora.
       — De Barrios!
       As palavras de Hawke assumiram peso desproporcional e Adrienne sentiu o gosto metálico do pânico invadir-lhe a boca.
       — Aonde você vai? — ela indagou, desesperada. — O que está acontecendo?
       Hawke abriu a gaveta da escrivaninha e retirou uma pistola que ela nunca vira antes.
       — Estamos sob ataque inimigo — ele informou, carregando a arma. — Tenho de subir para o convés.
       — Não!
       Ele atravessou o aposento, e o salto das botas ecoou no piso de madeira.
       — Hawke...
       — Quero que fique aqui, Adrienne. — Tomou as mãos delicadas e colocou a arma sobre as palmas macias. — Você sabe como usar isso?
       — Sim. Bradford me ensinou.
       — Ótimo. — Ele se levantou e seguiu para a porta. – Não hesite em dispará-la. Aconteça o que acontecer, não saia daqui.
       Ela prendeu a respiração ao ver a porta se fechar atrás dele.
       Permaneceu imobilizada, em estado de choque, com a pistola nas mãos.
       De Barrios. Rogillio Saldania de Barrios, o temido pirata espanhol, um homem capaz de cometer as piores crueldades.
       Ela se lembrou da conversa que tivera com Stacia em seu quarto, e um arrepio de pavor percorreu-lhe a espinha.
       Não, não ficaria esperando passivamente no interior da cabine! Levantou-se de um pulo e vestiu roupas masculinas, enfiando a pistola na faixa da cintura. Prendeu os cabelos e escondeu-os sob o chapéu de três pontas.
       O cheiro de pólvora trazída pelo vento a sufocou. Apressando-se para sair, Adrienne avistou a faca pontiaguda com que Hawke havia fatiado a ave no jantar, e escondeu-a por dentro da bota. Com cuidado, abriu a porta da cabine e respirou fundo.
       Por um momento, o pânico a impediu de agir. Armando-se de coragem, abaixou-se e atravessou o corredor que levava ao convés. Para seu horror, deparou-se com um corpo desfalecido e respirou aliviada ao ver que era um desconhecido.
       Ao pisar no convés, Adrienne cobriu a boca com as mãos, horrorizada. Os rostos enfurecidos dos homens do capitão de Barrios ocupavam o tombadilho, com espadas e pistolas nas mãos. A embarcação, a pouca distância, continuava a atirar, e as balas chegavam cada vez mais perto.
       De súbito, mãos poderosas pousaram em seus ombros e ela soltou um grito de terror.
       — Você está armada?
       A voz de Hawke ecoou atrás de si e ele protegeu-a com seus braços. Ela assentiu, lembrando-se de respirar.
       Em meio ao barulho e à fumaça, avistou a embarcação imponente do capitão de Barrios. El Diablo Dorado aproximava-se cada vez mais, enquanto a tripulação do Sans Felicia se engajava na violenta batalha.
       — Volte para a cabine, Adrienne.
       — Não! Não vou deixá-lo!
       — Proteja-se. Não quero perdê-la agora.
       A voz suplantou os gritos dos homens. Ela viu Hawke sumir em meio à luta ensandecida e se escondeu detrás do leme.
       A embarcação pirata, parada lado a lado, era a materialização de um pesadelo. Os marujos, com as facas presas aos dentes, penduravam-se em cordas e saltavam no convés do Sans Felicia.
       De súbito, o barulho ensurdecedor cessou, e as nuvens de fumaça que pairavam no ar se dissolveram até desaparecer.
       Adrienne prendeu a respiração, imóvel. Por um momento irreal, acreditou que a batalha havia terminado. Tomando coragem, ela estendeu o pescoço e viu os homens do capitão de Barrios reunidos a bombordo, formando um aglomerado compacto. Muitos pareciam feridos, embora grande número permanecesse de pé.
       Subitamente, a massa compacta se abriu, e apenas um homem permaneceu parado ao centro. A camisa alva e a casaca preta de veludo denotavam a elegância e o luxo do pirata de traços fortes e marcantes. O brilho que se refletia nos olhos negros fez com que um arrepio gelado percorresse a espinha de Adrienne.
       Ele olhou ao redor, e um sorriso brotou nos lábios finos ao avistar Hawke à frente da tripulação.
       — Senor Hawke... — E ele inclinou a cabeça com ironia. — Buenos dias.
       Hawke estreitou os olhos.
       — De Barrios.
       — Pela manhã, acordei com uma estranha sensação e disse a mim mesmo: sí, hoje vou saciar minha sede de vingança. — Ele abriu os braços, num gesto amplo. — E qual não foi minha surpresa ao me deparar com a embarcação de um traidor inglês!
       O eco de risadas acompanhou o comentário.
       — Silêncio! — ele ordenou, e seus homens obedeceram no mesmo instante. — Mas você também conhece o gosto da vingança, não é, capitão Hawke?
       — Esperava nunca mais vê-lo quando o deixei na costa da África, sob o cuidado das autoridades, de Barrios.
       — Dois anos! Eu passei dois anos nas prisões de Sevilha por sua causa! Mas você ficaria surpreso com o que se consegue com o poder do ouro... — Ele completou a frase com uma risada horripilante. — Depois de pagar as taxas impostas pela Casa de Contratacion, consegui minha liberdade e pude reaver meu carregamento contrabandeado. Eu, que vendi os escravos que trabalham nas minas do Panamá, responsáveis por tirar da terra o ouro que faz da Espanha um império! E onde está minha recompensa?
       — Você teve o que mereceu, de Barrios. Achei que tivesse aprendido a lição.
       — Capitão, é exatamente isso que nos diferencia. Não sou um corsário abençoado pela rainha da Inglaterra, como você foi. Sou um pirata e nunca terei o bastante.
       — O que você quer, de Barrios?
       — Quero sua embarcação, mas vou lhe oferecer uma chance de escolha — o capitão espanhol disse com calma gélida. — Olhe ao redor. Meus homens são mais numerosos e estão em melhores condições que os seus. Você pode entregar o navio e se render junto com a tripulação, ou lutar.
       — Não sou covarde, de Barrios.
       — Por Dios, capitão Hawke! Então, vamos lutar!
       O capitão Rogillio empunhou a pistola e desferiu um tiro para o alto. No mesmo instante, um grito em uníssono cortou o ar, e seus homens partiram para cima da tripulação do Sans Felicia.
       
       
       Capítulo VI
       Adrienne fechou os olhos, ouvindo os ecos da sangrenta batalha.
       — Eu o desafio, de Barrios! — a voz de Hawke suplantou o barulho. — Venha lutar comigo e sentirá o sabor da morte!
       O pirata recebeu as palavras com um grito exultante.
       A batalha prosseguia com ferocidade, e ela se abaixou, protegendo-se dos projéteis que cortavam o ar. Sabia que a tripulação do Sans Felicia seria leal ao capitão, mas estava em menor número.
       Estendendo o braço, apanhou o florete que deixara ao lado do leme, disposta a enfrentar a luta se fosse necessário. O cheiro de pólvora se confundia com o aroma adocicado do sangue, e ela apertou o cabo do espadim com força.
       Hawke parecia estar em todos os lugares. O reflexo do aço polido de sua espada reluzia no ar, e os piratas espanhóis caíam um a um, atingidos pela agilidade de sua lâmina. Os olhos azuis refletiam o brilho gélido da fúria.
       — Hawke, cuidado! — ela gritou, ao ver o capitão pirata avançar na direção dele.
       De Barrios empunhou a espada e atacou, numa luta de vida ou morte.
       Adrienne se apoiou no timão, receando pelo que estava por acontecer, enquanto os homens se mantinham a distância, observando com os olhos vidrados a batalha decisiva entre os dois capitães.
       De súbito, de Barrios recuou um passo e estendeu a mão esquerda, num gesto sutil. Seus homens se agruparam no mesmo instante ao redor de Hawke, em um semicírculo de predadores.
       — Não! — Adrienne gritou, percebendo que seu pior pesadelo se concretizara.
       Apavorada, sacou a pistola com dedos trêmulos e agarrou o cabo da arma com toda a sua força.
       Ao perceber que estava cercado, Hawke abaixou a espada e riu com ironia.
       — Os anos que você passou em Sevilha não foram suficientes para ensiná-lo a lutar com honra, de Barrios.
       — De que me serve a honra? — foi a resposta irônica. — Sonho com esse momento há muitos anos, capitão.
       Os marujos do El Diablo Dorado avançaram na direção de Hawke como lobos famintos, enquanto a tripulação do Sans Felicia assistia, sem poder reagir. O espanhol conseguira tomar o capitão como refém, e tirava vantagem de sua posição.
       Quando o círculo compacto se fechou ao redor de Hawke, Adrienne soube que chegara o momento de agir. Retirou a pistola da cintura, engatilhou-a e fechou os olhos.
       — Não! — bradou, e seu grito se confundiu com o estampido da arma.
       Pegos de surpresa, os piratas se distraíram. Na fração de segundo que se seguiu, Hawke virou-se para ela e os olhares se encontraram numa comunicação em que o silêncio estava carregado de milhares de palavras.
       A tripulação do Sans Felicia aproveitou-se do momento para atacar, reiniciando a batalha.
       De súbito, um par de mãos brutais caíram sobre Adrienne.
       — Fique quieta — ecoou a voz sussurrada em seu ouvido.
       Um homem da tripulação do navio inimigo arrancou a pistola das mãos dela e a arrastou para o convés, onde Hawke e o capitão de Barrios se enfrentavam num duelo mortal.
       Debatendo-se com todas as suas forças, Adrienne cravou os dentes na mão que lhe tapava a boca, ao mesmo tempo em que atingia o torso do pirata com um violento golpe do cotovelo.
       O movimento chamou a atenção do espanhol e ele recuou um passo.
       — Por Dios! O que temos aqui?
       Adrienne se soltou dos braços fortes e recuperou a arma, caída ao chão.
       — Afaste-se do capitão Hawke, ou vou matá-lo agora mesmo!
       Ela tentou imitar o timbre masculino, mas o coro de risadas que se seguiu a sua ameaça revelou que não havia funcionado.
       — Você contrata crianças para defender sua embarcação? — de Barrios indagou com escárnio.
       Hawke virou o rosto para Adrienne, e o lapso de atenção custou-lhe caro. Seus movimentos foram interrompidos quando sentiu a lâmina da faca em sua garganta.
       O capitão de Barrios abaixou a espada com um sorriso confiante ao ver que um de seus homens aprisionara o capitão. Abriu os braços e deu passadas largas na direção de Adrienne.
       — Vamos! Atire!
       Ela fechou os olhos. Agarrou o cabo da arma com as duas mãos e fez pontaria. Se atirasse, estaria declarando a sentença de morte para Hawke.
       Com lágrimas nos olhos, ela soltou a pistola, enquanto de Barrios permanecia a sua frente, fitando-a com interesse.
       — Ora, ora... Quem diria! — O espanhol avaliou-a com interesse. — Sí, vejo que o dia ainda reserva algumas surpresas!
       E ele retirou o chapéu de Adrienne, fazendo com que uma cascata de fios negros caíssem sobre seus ombros.
       — Eu não me importaria se minha vida fosse tirada por uma bela mulher — comentou em tom sedutor, — mas este momento ainda não chegou.
       Os homens de Hawke, conscientes de que teriam de se render aos espanhóis, mantiveram silêncio tenso, numa agonizante expectativa.
       Com um gesto, o espanhol indicou que levassem os cativos para o galeão.
       Hawke permanecia imobilizado, sentindo a lâmina fria tocando-lhe a pele, sem poder reagir enquanto seus homens eram arrastados como prisioneiros.
       De Barrios segurou Adrienne pelo punho e puxou-a para perto do capitão.
       — Há muitos anos, ataquei um barco que vinha da colônia, a caminho da Inglaterra. A tripulação indefesa se rendeu sem a menor resistência e eu trouxe para minha embarcação o cavalheiro inglês que planejara a viagem. O nome dele era Charles Leslie.
       Adrienne engoliu em seco, tentando não demonstrar o pânico que as palavras provocaram.
       — Talvez esse nome signifique algo para você, capitão Hawke.
       Ele apenas apertou os lábios, sem dizer uma palavra.
       — O sr. Leslie declarava-se responsável por impedir que o herdeiro da propriedade dos Valcon pudesse se apossar das terras. Lorde Nicholas Valcon, conde de Warrick... — De Barrios fez uma pausa e sorriu com desdém. — Este herdeiro é você.
       Os olhos de Hawke refletiram o brilho azulado da ira.
       — O que levaria um homem a fazer tal confissão? — seu maior inimigo prosseguiu com falso pesar. — Infelizmente, nunca saberemos.
       Ele voltou o rosto na direção de Adrienne e ergueu as sobrancelhas, fazendo com que um arrepio gelado percorresse sua espinha.
       — Ou saberemos?
       — Isso não importa — Hawke afirmou com firmeza. — Charles Leslie está morto.
       — Sí. Mas a família dele ainda vive.
       — Pare, por favor! — Adrienne suplicou.
       — Agora que você não tem mais um lar para acolhê-lo, para onde pretende ir, capitão Hawke? — provocou, ignorando os protestos. — Claro, pretende se vingar. Diga-me, o desejo de vingança aquece seu peito tanto quanto o meu?
       O pirata jogou a cabeça para trás, com uma gargalhada de zombaria.
       — O sr. Leslie também dizia que estava em posse dos meios para restaurar a legitimidade de sua herança — prosseguiu. — Ele se arrependera de ter furtado o relicário da família, e pretendia devolvê-lo. Agora, isso já não é mais possível.
       — O castelo Warrick será meu, a despeito do passado. E quando isso acontecer, eu me vingarei de todos os descendentes de Charles Leslie!
       — Por que não começar agora? — Com um sorriso sádico, o capitão pirata empurrou Adrienne na direção dele. — Quero apresentá-lo à filha de Charles Leslie.
       Atônito, Hawke fez menção de dar um passo à frente, mas a lâmina em sua garganta o impediu.
       — É mentira! — Bradou, procurando os olhos de Adrienne à procura da verdade.
       — Como é possível que você não saiba da identidade de quem entra em sua embarcação?
       — É verdade, Hawke — Adrienne sussurrou com lágrimas nos olhos. — Charles Leslie é meu pai.
       Parte dela morreu quando viu desvanecer o brilho dos olhos azuis.
       — Sinto muito — balbuciou, consciente de que havia perdido Hawke para sempre.
       Ele fechou os olhos, sentindo o impacto da revelação. Quando os abriu, a dor havia dado lugar à raiva.
       Com o movimento ágil de um predador, ele golpeou com o cotovelo o homem que o mantinha imobilizado e girou o corpo, derrubando-o.
       — Hawke, não!
       As palavras de Adrienne emergiram em um grito desesperado. Ela tentou se desvencilhar dos dedos firmes em seu pulso para alcançar o homem que amava. No entanto, a força do espanhol transformava seus esforços em uma débil vibração.
       Hawke se precipitou na direção do mastro principal e se agarrou à escada.
       — Não vou permitir que tomem o que é meu! — gritou acima do caos.
       Ele alcançou a gávea num piscar de olhos e, com um movimento fluido, projetou-se no ar, mergulhando nas águas escuras.
       Adrienne observou o corpo atlético se flexionar, desenhando uma curva descendente em queda vertiginosa, até ser tragado pelas águas serenas.
       Um silêncio pesado se seguiu, e ela tomou consciência de que aquela cena ficaria gravada para sempre em sua memória, como a última vez em que vira seu bem-amado.
       — Ele se foi! — gritou em desafio. — Você não vai apanhá-lo, de Barrios!
       — Silêncio! — o espanhol exigiu, furioso. — O capitão Hawke não realizará sua vingança, mas você proporcionará a minha.
       Ele chamou um marujo e fez um gesto de desdém na direção de Adrienne.
       — Leve-a para bordo do El Diablo Dorado e tranque-a no porão. Mas tome cuidado. Se ela morrer, você também morrerá.
       
       
       Adrienne perdeu a noção do tempo. Já não sabia quantas horas haviam se decorrido desde que vivera aquele pesadelo no Sans Felicia. Sabia apenas que estava sozinha.
       Os homens da tripulação estavam presos no cativeiro sob a cozinha, enquanto ela permanecera na cela sob o tombadilho superior. Podia imaginar os horrores pelos quais estavam passando, a julgar pelas condições precárias e insalubres do porão.
       Ela dobrou as pernas e abraçou os joelhos, equilibrando-se sobre as pilhas de entulho espalhadas pelo chão.
       Hawke se fora. A simples noção de que não mais o veria fez com que seu coração mergulhasse em um abismo sem fim. Não podia imaginar sua vida sem ele.
       No entanto, ainda conservava uma tênue esperança de que estivesse vivo, mesmo sabendo que seria humanamente impossível sobreviver a uma queda daquela altura. Seu peito se aqueceu por um instante, até que a ilusão fosse tragada pela escura realidade que a rodeava.
       Sob o colarinho da camisa, a gargantilha ao redor de seu pescoço ainda continha o anel que Hawke lhe devolvera. Acariciou-o como se a peça de ouro ainda conservasse o calor e a energia do peito viril.
       O som de passos chamou-lhe a atenção, e ela virou a cabeça na direção do barulho. Porém, a pesada escuridão não revelou nada além de sombras. Ela fechou os olhos, evitando os pensamentos que a atormentavam, imagens apavorantes que antecipavam seu destino cruel e desconhecido.
       Receando que fosse uma ratazana, ela se pôs de pé, e sentiu algo machucar seu tornozelo. Só então lembrou-se da adaga que escondera dentro da bota, antes de sair da cabine do Sans Felicia. Embora fosse uma arma pequena, ofereceu-lhe algum conforto diante da trágica situação em que se encontrava.
       Colando-se à parede, ela apertou o cabo da faca, disposta a enfrentar o inimigo. Ouvira histórias sobre ratos imensos que infestavam embarcações e corroíam o casco com seus dentes afiados. Os marinheiros costumavam dizer que as criaturas pestilentas eram as únicas sobreviventes após um naufrágio.
       Aterrorizada pela própria imaginação, Adrienne começou a tremer. Um súbito choque fez o galeão balançar. Sobre sua cabeça, os canhões rugiram uma salva vitoriosa. A tripulação comemorava a tomada do Sans Felicia, e os homens bebiam e cantavam com estardalhaço.
       Exausta, ela se esqueceu do medo e se sentou. Enquanto permanecesse escondida, não se lembrariam dela. Aninhada pela esperança, Adrienne adormeceu. Em seus sonhos, ainda pôde ouvir os ecos da risada de Hawke.
       Depois do que lhe pareceu uma fração de segundo, ela acordou com o tilintar das correntes que prendiam as grades da cela. Pôs-se de pé e levou a mão à faca presa na cintura.
       Um facho de luz atravessou a densa escuridão e recaiu sobre seu rosto.
       Ela pestanejou, e levou alguns segundos para que suas pupilas se adaptassem à claridade. Então, reconheceu o homem parado a sua frente, o mesmo que a capturara no convés do Sans Felicia.
       — Venha — ele disse simplesmente.
       — Não!
       — Você deve vir comigo, agora.
       Ele deu-lhe as costas e subiu a escada de madeira que levava ao tombadilho. Apesar do tamanho, os movimentos do pirata eram silenciosos, e ele desapareceu pela abertura sem esperá-la.
       Armando-se de coragem, Adrienne escondeu a adaga sob a dobra da blusa e seguiu em frente. O pirata subiu outro lance de escadas e indicou que ela caminhasse por um corredor amplo que se abria no convés do galeão.
       — Entre aqui — ordenou, abrindo a porta maciça de uma cabine. — Não tente escapar do capitão. Você não tem saída.
       Bastou uma rápida avaliação no interior do aposento para constatar que o marujo estava certo. Um arrepio gelado percorreu sua espinha quando a porta se fechou atrás de si. Ela olhou ao redor, imaginando que aquela seria sua nova prisão.
       A cabine estava guarnecida com luxuosa mobília, pesada e escura. A um canto, notou o toucador com toalhas limpas e itens para higiene pessoal, além de um requintado vestido em veludo negro, saiotes finos e roupas íntimas.
       Na mesa ao centro, três bandejas cobertas com redomas de prata sugeriam que o jantar já fora preparado.
       Ela avaliou o ambiente com cuidado, sem encontrar nada que pudesse usar para tirar vantagem. Através da escotilha, observou o Sans Felicia ondulando ao sabor das vagas.
       Seu olhar pousou na tina com água quente e limpa. Sem resistir ao impulso, apanhou o fino sabonete sobre a mesa do lavatório e lavou o rosto e as mãos. Seu maior desejo era se despir e mergulhar de corpo inteiro na água morna, mas receou expor sua vulnerabilidade ao inimigo.
       Tudo indicava que Rogillio Saldania de Barrios desejava usufruir de sua companhia, e oferecia-lhe recursos para que se apresentasse de forma civilizada.
       Mal concluiu o pensamento, o capitão pirata entrou na cabine. Ele carregava uma garrafa e a estendeu na sua direção.
       — Vamos brindar à vitória! — exclamou, levando o gargalo à boca num longo trago.
       — Não há vitória — Adrienne desafiou. — O capitão Hawke ainda está vivo, e voltará.
       — Você insiste em lutar, não é? — De Barrios colocou a garrafa sobre a mesa e caminhou pelo aposento. — Vejo due não aprovou o vestido que escolhi para que usasse no jantar. E uma pena.
       — Prefiro os meus trajes.
       Ele passeou o olhar pela curva do busto, escondido sob o tecido da camisa, e o brilho do desejo iluminou-lhe os olhos.
       — Não importa. As roupas que está usando podem ser removidas com mais facilidade.
       — Afaste-se! — ela gritou quando o pirata se aproximou.
       Uma onda de fúria cresceu no peito de Adrienne, emprestando-lhe a força de uma fera. Surpresa com a própria reação, ela recuou um passo, com respiração ofegante.
       — Aonde pensa que vai, doçura? Minha querida, não tenha medo...
       Ela fechou os olhos com o toque da mão possessiva em seu rosto. Torceu o nariz ao inalar o hálito adocicado pela bebida.
       — Vamos para minha cama — ele sussurrou -, e asseguro que nunca mais vai querer deixá-la.
       — Nunca! — ela disse por entre os dentes.
       — Venha!
       O tom sedutor deu lugar à premente impaciência.
       Com um movimento ágil, Adrienne apanhou a adaga na cintura e a bramiu no ar.
       — Não ouse me tocar!
       O pirata recuou, surpreso, e ela avançou como um animal enfurecido. Porém, mesmo que recrutasse todas as suas energias, seria impossível subjugar a força do pirata. Com a agilidade de uma pantera, o capitão de Barrios girou o corpo e segurou-a pelo pulso, fazendo com que soltasse a faca. Mantendo-a presa, ele se abaixou para apanhar a arma caída ao chão.
       — Nunca gostei de matar mulheres — sussurrou ao seu ouvido, pressionando a lâmina em seu pescoço -, mas serei forçado a fazê-lo. Mas não vou matá-la ainda.
       — O que vai fazer?
       — Talvez esteja na hora de começar a ter medo, doçura. Mesmo assim, você vai gostar, e vai aprender a gostar de mim.
       Ele relaxou a pressão e fez com que se voltasse de frente para ele. Deslizou a mão pelo pescoço delicado e deteve-se no colarinho da camisa.
       Adrienne parou de respirar. Ela fechou os olhos, sentindo uma onda de repulsa crescer dentro de si.
       De súbito, ele se afastou e puxou com brusquidão a cadeira à frente da mesa.
       — Sente-se.
       — Não! Se pensa que vai me dar ordens, está muito enganado!
       Com um movimento violento, o capitão arremessou a adaga.
       Ela rodopiou pelo ar até se fincar na madeira do tampo da mesa.
       — Sente-se!
       Sem desgrudar os olhos da lâmina que ainda vibrava pelo impacto, Adrienne obedeceu.
       — Assim está melhor.
       Ele se acomodou e suspendeu a redoma de prata sobre a travessa à mesa, inalando o agradável aroma da paella. Depois de retirar duas colheres da gaveta sob o tampo, colocou uma generosa porção em seu prato e se pôs a comer com apetite.
       — Sirva-se — ordenou, indicando a comida.
       Adrienne pousou o olhar sobre o punhal cravado na madeira. Apanhou uma fatia de pão e mordiscou uma pequena porção, forçando-se a engolir.
       — Hawke voltará para me resgatar — ela disse num fio de voz.
       — Tola! Por acaso está ansiosa para sentir o gosto da vingança dele?
       — Ele não se vingará de mim.
       — Lorde Valcon... — de Barrios murmurou com afetação. — Filho único e último herdeiro do castelo de Warrick. Ele perdeu muito tempo vagando pelos mares à procura dos meios que poderiam lhe assegurar a posse de suas terras.
       — O capitão Hawke sempre acreditou que conseguiria resgatar a propriedade.
       — Tolo! Lastimo apenas que a diversão tenha terminado. Ele perdeu o jogo.
       Adrienne engoliu as lágrimas.
       — Eu me diverti bastante — de Barrios continuou. — É uma pena que tenha terminado. Mais fui bem recompensado. O Sans Felicia e o ouro que tem a bordo farão de mim um homem rico. Você e eu encontraremos diversas formas de gastar esse tesouro quando estivermos de volta à Espanha.
       Ela arriscou um olhar para a porta, medindo a distância.
       — Não pense que vai escapar de mim — o capitão disse em tom divertido. — Talvez você desista de fugir se eu lhe contar como eu sabia do seu parentesco com Charles Leslie.
       Adrienne fitou-o com interesse. Como aquele pirata conhecera seu pai?
       — Charles Leslie... — ele disse, como se pensasse em voz alta. — Ele era um homem interessante, torturado por muitos fantasmas. Você herdou as mesmas feições dele.
       Ela abaixou as pálpebras ao sentir o olhar crítico sobre si.
       — Sim... É inconfundível! Você jamais poderia renegá-lo. E eu sei, é claro, a razão da viagem de seu pai para a Inglaterra.
       — Ele estava tratando de negócios e morreu no mar.
       — É verdade. E também é verdade que ele carregava objetos de grande valor para a família Valcon, itens que ele próprio roubou quando era jovem, antes de desaparecer no anonimato da costa da Virgínia.
       A sordidez das ações do pai pareciam ainda mais vergonhosas quando pronunciadas por aquele homem, e Adrienne abaixou o rosto, humilhada.
       — Você o renega?
       — Como posso, sabendo que o que diz é verdade? — ecoou num fio de voz. — Como sabe de tudo isso?
       De Barrios ergueu os ombros com indiferença.
       — Ele mesmo contou, sem que eu precisasse forçá-lo. Estava amargurado pela culpa, e pretendia procurar o capitão Hawke para lhe devolver o que lhe pertencia.
       Adrienne apertou os lábios, contendo o pranto. Ao menos, seu pai tentara se redimir.
       — E, para meu grande espanto, quando consegui encontrar meu maior inimigo, defrontei-me com a filha de Charles Leslie em sua embarcação... — O pirata riu com satisfação. — O que você estava fazendo lá? Procurando o que seu pai perdeu?
       Ela se manteve em silêncio enquanto seu pensamento voltava no tempo. Lembrou do avô pronunciando com firmeza a intenção de fazer com que desposasse Jonathan, e entendeu as razões por detrás da urgência.
       Sir Alexander desejava protegê-la. Ele estava consciente do desejo de vingança do capitão Hawke, e sabia que, mais cedo ou mais tarde, a verdade seria revelada.
       — Talvez você estivesse à procura do complemento disto...
       O capitão de Barrios se levantou e abriu o cofre escondido sob o mapa pregado à parede. Retirou uma pequena caixa de madeira e abriu-a, revelando seu conteúdo.
       — Seu pai estava em posse deste anel. Creio que agora, poderei completá-lo com seu par. Conheço alguém capaz de pagar uma verdadeira fortuna por essas peças.
       Antes que Adrienne pudesse impedir, o pirata apanhou a gargantilha ao redor de seu pescoço. Arrancou-a com facilidade e segurou o anel entre os dedos.
       Ela sentiu o mundo desabar sobre seus ombros ao vê-lo combinar as duas peças, num encaixe perfeito. Estendeu o braço num gesto desesperado, mas o espanhol fechou a mão sobre a jóia.
       A última garantia da herança de Hawke se fora.
       — Agora, minha vitória está completa. Sem isso, a posse das terras não poderá se concretizar.
       — Monstro! O que fez a meu pai? — O tom de voz cresceu em um nível próximo à histeria, e ela apertou as mãos na borda da mesa. — Você matou meu pai?
       — Oh, sim. — Ele se sentou, colocando as duas peças encaixadas sobre a mesa. — Assim como farei com você no momento certo.
       Adrienne fechou os olhos, sentindo que uma nova mulher brotava dentro de si. Ela perdera a fé, a inocência e o amor. Todas as traições e mentiras se fundiram em uma única emoção, e a intensidade pura e elementar de sua fúria a impulsionou para o combate.
       — Assassino! — bradou, voando sobre o pirata.
       De Barrios se levantou de um pulo e segurou-a pelos pulsos. Furiosa, Adrienne se debateu, chutando-lhe as pernas.
       — A filha demonstra mais o espírito de luta do que seu patético pai — zombou com escárnio, imobilizando-a.
       Com a respiração pesada, ela tentou se desvencilhar, mas percebeu que a força daquele homem suplantava sua fúria.
       — Pare de se debater! Você sabe que não poderá escapar...
       As palavras do capitão foram interrompidas pela explosão ensurdecedora no convés. Uma nuvem densa de fumaça entrou pela escotilha, sufocando-os.
       — Madre de Dios! O que está acontecendo?
       O capitão soltou-a e Adrienne caiu no chão. Em pânico, ela se encostou à parede e abraçou os joelhos.
       O pirata abriu o armário de armas e apanhou uma pistola antes de se precipitar para fora da cabine, abandonando a prisioneira para defender seu barco.
       
       
       Capítulo VII
       Adrienne olhou pela escotilha e avistou o mastro do navio pirata em chamas. Os gritos da tripulação no convés penetraram em seus ouvidos, denunciando a tragédia.
       Sobre o tampo da mesa, jaziam os dois anéis que confirmavam o título de nobreza de Hawke.
       O cerco dos gritos da tripulação invadiu a cabine, e ela se apressou em apanhar as duas peças, guardando-as no bolso da calça.
       Permaneceu paralisada no centro da cabine, enquanto grossos rolos de fumaça entravam pela porta, indicando o perigo iminente.
       Fechando os olhos, Adrienne recrutou todas as forças e focalizou-se em apenas um objetivo: sobreviver.
       Removeu o punhal da superfície da mesa, prendendo-o no cós da calça. Porém, não era o bastante. Olhando ao redor da cabine, notou que, na urgência de sair, de Barrios havia deixado o armário de armas aberto. Com um suspiro de alívio, apanhou seu florete que fora confiscado ao ser levada para bordo.
       Correu para a porta e o som de passos, seguido do impacto de um corpo caindo ao chão, fez com que gritasse.
       Segurando com firmeza o cabo da arma, arriscou-se a pisar no corredor.
       — Adrienne!
       Ela fechou os olhos, receando estar sonhando.
       — Hawke!
       Pronunciou o nome como resposta a uma prece silenciosa, e abaixou a arma com mãos trêmulas. O poder da presença daquele homem transportou-a para outro mundo. Por um instante, seu coração parou, voltando a pulsar em êxtase.
       — Você está vivo! Oh, Hawke... Você voltou!
       — Sim.
       Teria o timbre profundo da voz denunciado uma nota de arrependimento?
       Ignorando a inquietante pergunta, Adrienne correu ao encontro dele e o enlaçou pelo pescoço.
       — Ele a machucou?
       A voz de Hawke denunciou o ódio contido quando ele viu as marcas vermelhas nos pulsos delicados.
       — Não foi nada. Eu estou bem, Hawke.
       Ele tocou-a de leve no rosto.
       — Siga-me.
       Adrienne não desejava nada além de sair da cabine e sumir daquela embarcação para sempre. Segurou com firmeza o cabo do florete e seguiu o capitão.
       — Você voltou por mim... — murmurou enlevada.
       — Voltei pela minha embarcação — Hawke respondeu em tom frio. — Meus homens estavam esperando por mim.
       Não tanto quanto eu, ela pensou.
       A chama de felicidade no coração de Adrienne se extinguiu ao perceber que a fidelidade de Hawke a sua tripulação era maior do que o que sentia por ela. Magoada pela rejeição, abaixou as pálpebras para que não visse a dor que a machucava. Talvez a esperança de que pudesse amá-la fosse em vão. No entanto, ainda havia algo que poderia oferecer.
       — Hawke, tenho algo para lhe mostrar.
       — Mais tarde. Preciso terminar o trabalho.
       Ele atravessou o corredor para o convés, deixando-a sem escolha a não ser segui-lo.
       No caminho, Adrienne se deparou com um corpo desfalecido e fechou os olhos. Não importava que outra vida tivesse sido sacrificada naquela batalha sangrenta. Pensando em de Barrios, ela agora conhecia a emoção profunda e sombria que levava homens como Hawke a se vingarem. Observou o rosto de seu amado à luz do dia, tentando discriminar seus pensamentos. Ele estava pálido, e havia manchas de sangue na camisa. As linhas de fadiga diminuíam o brilho de seus olhos, mas os lábios estavam pressionados numa firme linha de determinação.
       O medo deixou um gosto metálico em sua boca ao constatar que fora a vingança que o trouxera de volta.
       Ela avistou Bradford e Pete, com Busche na retaguarda, carregando um arsenal de artilharia. Com gritos que atravessavam o ar, eles embrenharam-se no violento combate em meio às chamas que se arrastavam pelo convés. A vitória era certa, e os homens do capitão de Barrios, tomados de surpresa, não tiveram como reagir.
       — Ainda não estamos a salvo — Hawke sussurrou para ela.
       Ele acenou para que Peter se aproximasse e o rapaz obedeceu prontamente.
       — Cuide de Adrienne — ordenou, empunhando a espada. — Leve-a para o Sans Felicia e permaneçam lá até que tudo esteja terminado.
       — Fique tranqüilo, capitão. — O rapaz saudou-a com um sorriso. — Fico feliz em vê-la, senhorita. Eu nunca me perdoaria se algo lhe acontecesse.
       — Eu também estou feliz que você esteja aqui, Pete. Mas como conseguiu? — ela perguntou, enquanto atravessavam o convés em chamas. — A última coisa que eu soube foi que a tripulação do El Diablo Dorado comemorou até que todos caíssem embriagados.
       — Sim, e foi aí que o capitão Hawke entrou em ação.
       Pete ajudou-a a subir na prancha de madeira que ligava os dois navios, e atravessaram rapidamente, deixando os últimos vestígios da batalha para trás.
       — Conte-me logo tudo que aconteceu, Pete! — Adrienne pediu logo que pisaram no convés. — Como o capitão conseguiu dominar o barco pirata?
       — Bem, ele esperou no bote até que os homens estivessem dormindo e subiu na embarcação sem ser notado. Depois de abrir as grades para nos libertar, mandou que os feridos voltassem para o navio e reuniu os homens para planejar a tomada do barco.
       Adrienne ouvia atenta, sem esconder o sorriso de admiração.
       — Encontramos toda pólvora que pudemos e a espalhamos pelo convés — o marujo prosseguiu. — Busche amarrou um pavio em uma garrafa de rum e a lançou. A explosão assustou os piratas, enquanto o fogo se alastrou rapidamente.
       — Brilhante! — ela exclamou, comovida. — Não é para menos que a tripulação venera Hawke.
       — O capitão é o melhor — Pete sorriu com orgulho. — Graças a ele, todos nós seremos homens ricos quando chegarmos à Inglaterra.
       Sim, ele é o melhor, ela disse para si, inundada por uma alegria infinita. Quando tudo parecia perdido, Hawke emergira do mar como um deus e revertera a situação a seu favor.
       Ela se debruçou na amurada, observando Bradford conduzir os prisioneiros do navio pirata pela ponte que unia as embarcações. El Diablo Dorado estava em chamas, e o crepitar da madeira queimando era entrecortado por explosões que destruíam a embarcação. O fogo atingiu os mastros, enquanto o Sans Felicia esperava como um santuário em meio ao caos.
       Braços poderosos pousaram em seus ombros, e ela fechou os olhos ao sentir a energia e o calor que fez seu corpo vibrar.
       — Hawke! — murmurou sem se voltar.
       — Você está bem?
       — Sim. Agora, estou bem.
       — Ótimo. Fique aqui. Tenho de voltar para bordo do El Diablo Dorado.
       — Hawke! Por favor, não volte lá!
       — Tenho de encontrar de Barrios. Não quero que escape desta vez.
       — Não! É muito arriscado! Por favor, fique!
       — Prometo que voltarei — ele afirmou, saltando para a embarcação pirata.
       Sem conter o impulso, Adrienne atravessou e o seguiu. Nuvens densas de fumaça a impediam de ver com clareza, e ela correu para a cabine do capitão, esperando encontrar Hawke.
       Avistou um vulto em meio à fuligem, e se precipitou em sua direção. No entanto, em vez de Hawke, o capitão de Barrios se materializou a sua frente.
       — Então, acha que vai escapar de mim... — o espanhol riu, retirando a espada com lentidão estudada.
       A fúria cresceu acima do pânico, e Adrienne sacou a pistola.
       — Não seja tola. Eu vou matá-la!
       — Se ela morrer, você morrerá duas vezes!
       Ela fechou os olhos ao ouvir o timbre profundo atrás de si.
       — Você! — murmurou o pirata, como se tivesse visto um fantasma.
       — A serpente já não pode esconder a face — Hawke proclamou ao encarar seu inimigo.
       O capitão de Barrios, ainda chocado, estendeu o braço em posição de ataque.
       — Você mantém o péssimo hábito de não cuidar do que possui, meu caro capitão. — Ele sorriu com escárnio. — Não cuida sequer de sua própria vida.
       — Palavras inúteis para um condenado — Hawke replicou. — Vamos terminar o que começamos, de Barrios.
       — Estou pronto, traidor inglês!
       E de Barrios atacou, golpeando o ar com violência.
       Imobilizada pelo pânico, Adrienne assistia enquanto os dois homens duelavam em meio às chamas.
       — Vou matá-lo! — de Barrios gritou, com o rosto transfigurado pelo ódio.
       Hawke circundou seu inimigo com a cautela de um predador. Com movimentos precisos, surpreendeu-o com um ataque sem chance de defesa, fazendo com que recuasse.
       Adrienne esperava em angustiante silêncio enquanto as lâminas de aço se chocavam no ar.
       O fogo se alastrava rapidamente ao redor deles. As labaredas cresciam, consumindo a estrutura de madeira do galeão. Apenas os três permaneciam na embarcação prestes a naufragar.
       Ela cravou as unhas na palma da mão, receando que a batalha entre os dois homens não tivesse fim.
       Hawke sobrepujava seu oponente em força e destreza, mas a exaustão física o impedia de lutar com toda sua habilidade. A fadiga atenuava a determinação de seus movimentos. O golpe certeiro da lâmina do pirata rasgou seu ombro e a mancha de sangue vivo inundou a camisa branca.
       Extenuado. Hawke não teve forças para reagir quando o capitão de Barrios avançou.
       Um grito de pânico escapou dos lábios de Adrienne ao vê-lo perder o equilíbrio e cair. Antes que pudesse se levantar, o espanhol apoiou o pé em seu peito, prendendo-o com o peso do corpo, e sacou a pistola.
       Hawke mal podia abrir os olhos quando o espanhol estendeu a mão, apontando a arma mortal para sua cabeça.
       — Quem sairá vitorioso agora, capitão?
       O crepitar das flamas se intensificou no silêncio, Adrienne lutou bravamente para manter o autocontrole. A explosão da pistola fez com que fechasse os olhos. Ao abri-los, a forma inconsciente do corpo desfalecido parecia sem vida sobre o tombadilho.
       Sentindo-se no limite de suas forças, Adrienne mergulhou em um abismo escuro, para emergir movida pela força do amor.
       — Você tirou tudo o que eu tinha de precioso! — gritou em agonia, avançando na direção do pirata com a arma empunhada. — Agora, vou tirar algo ainda mais precioso de você... Sua vida!
       Ela engatilhou a pistola, lembrando-se das lições e das palavras de Hawke, que pareciam ecoar de uma eternidade atrás dela.
       Sem hesitar, mirou o peito do espanhol e atirou.
       Então, o fim se tornou um novo começo. Ela observou, horrorizada, enquanto o capitão de Barrios caía, desfalecido. O ferimento no ombro não fora mortal, mas o deixara sem forças para reagir.
       Obrigando-se a se recuperar do choque, ela se debruçou sobre Hawke. O peito arfava em movimento débil, quase imperceptível. Aproximou o rosto, ouvindo a frágil pulsação confirmando que ele estava vivo.
       A bala disparada pelo pirata passara a poucos centímetros do coração e se encravara na costela, mas o ferimento não fora letal.
       Grossas lágrimas inundaram o peito largo, enquanto o fogo consumia o que ainda restava do galeão, criando um grosso pilar de fumaça negra que encobria o sol.
       Esquivando-se das chamas, ela foi até a amurada e acenou ao avistar Bradford no convés. Ao constatar que ele a avistara, apressou-se em cuidar de Hawke.
       Com um movimento decidido, rasgou a manga da camisa e pressionou a tira de tecido sobre o ferimento, tentando estancar o sangue.
       Momentos depois, um grupo de homens pulou no convés em chamas.
       — Levem o capitão — ordenou, sem deixar de pressionar a lesão. — Por favor, tomem cuidado.
       — Não se preocupe, mademoiselle — Artois a tranqüilizou. — Eu já cuidei do capitão por muitas vezes.
       Com extremo cuidado, os homens colocaram Hawke sobre uma prancha de madeira e atravessaram a plataforma para o Sans Felicia, enquanto três homens amarravam os pulsos do capitão pirata para levá-lo como prisioneiro.
       Adrienne acompanhou o grupo, rezando para que os precários medicamentos a bordo fossem suficientes.
       — O capitão Hawke ficará bem — ela proclamou diante da tripulação que a fitava em expectativa. — Vamos cuidar dele. Levem-no para a cabine.
       Os homens permaneceram em silêncio respeitoso. Receavam pela vida do capitão, e uniram-se em uma prece silenciosa.
       Bradford assumiu a liderança, ordenando que cuidassem dos feridos e se preparassem para zarpar. O timoneiro levantou a âncora, deixando a embarcação livre para partir.
       — Para onde vamos? — apenas Peter teve coragem de dar voz à pergunta que permanecia no ar.
       Todos se voltaram para Adrienne, unânimes em outorgar-lhe a liderança na ausência do capitão.
       Ela olhou para o primeiro imediato, à espera de ajuda. Bradford inclinou a cabeça, numa afirmativa silenciosa.
       Adrienne respirou fundo. O vento envolveu seus cabelos e a brisa costeira trouxe ar puro e revigorante. Ela olhou ao redor, ansiando por encontrar a civilização. A opção mais sensata era voltar para o porto de New Providence. A embarcação de seu avô chegaria mais cedo ou mais tarde. Se ficasse, poderia encontrá-lo e voltar para a colônia.
       Ela relanceou o olhar para o norte. Se rumasse naquela direção, chegariam à Virgínia. No entanto, unia eternidade se passara desde que saíra da colônia. Muita coisa havia mudado e, depois de tudo, uma pergunta ainda permanecia sem resposta.
       — Por quê? — murmurou para si.
       A palavra reverberou em sua mente. Por que seu pai cometera uma atrocidade daquela magnitude? Como pudera viver tamanha mentira, sem nunca revelar a verdade para a família? O que o mantivera afastado da Inglaterra por tantos anos, e por que decidira subitamente retornar?
       Então, lembrou-se da determinação de Hawke ao afirmar que voltaria para casa para reaver o que lhe pertencia.
       — Vamos para a Inglaterra.
       A afirmativa foi abafada pelo coro exaltado da tripulação, que comemorou com entusiasmo.
       Ela apertou os olhos para protegê-los do sol poente. Inglaterra. Ainda havia respostas lá, e teria de encontrá-las.
       — Pete, leve água fervida e toalhas limpas para a cabine do capitão — pediu, seguindo Artois.
       Sentou-se à beira da cama e despiu a camisa dele, avaliando a profundidade do ferimento.
       Hawke permanecia desfalecido. Ele perdera muito sangue, e ainda estava sob risco de morte.
       Assim que Pete chegou, ela apanhou a barra de sabão e lavou o ferimento, deixando-o livre dos vestígios de sangue, para, a seguir, desinfetá-lo com rum.
       O chefe de cozinha esterilizou no fogo uma faca pontiaguda e removeu a bala. Com a lâmina em brasa, cauterizou o ferimento e cobriu-o com emplastro de mostarda e sal.
       — Vou preparar caldo de mariscos. O capitão precisa se alimentar.
       — Faça isso, Artois. Eu ficarei ao lado dele.
       Adrienne umedeceu uma toalha limpa e removeu as marcas da batalha no corpo de seu amado.
       Sentou-se ao lado dele e acariciou o rosto lívido. Naquele momento, soube que daria sua própria vida para salvar o homem que amava.
       
       
       A fronte de Hawke reluzia, banhada por gotículas de suor. Sua mente se confundia em meio a fragmentos de sonhos que o aprisionavam, numa confusa ilusão de irrealidade.
       Via-se caminhando ao lado da muralha do castelo de Warrick. O vento castigava suas costas sem piedade à medida que andava, e rostos familiares o fitavam, preenchendo os jardins viçosos e exuberantes. Ignorando a intempérie, ele seguia em frente, distanciando-se do mar.
       De súbito, percebeu que, quanto mais parecia se aproximar da entrada, mais se distanciava, até que a torre do castelo se tornou inatingível. A muralha e as faces que o observavam desapareceram e ele se viu sozinho, sem nada além do silêncio a rodeá-lo.
       Com um gemido, tentou se erguer, mas a dor pontiaguda no ombro direito o impediu. Mergulhou em um estado de inconsciência, enquanto cenas da batalha sangrenta com o capitão de Barrios desfilavam em sua mente.
       Agoniado, fez força para se erguer mais urna vez, lutando contra a escuridão, mas mãos gentis o detiveram, fazendo com que se recostasse no travesseiro.
       Uma mulher, pensou, enquanto imergia novamente no pesadelo. Precisava do toque, do som da voz, do perfume de uma mulher para que os fantasmas desaparecessem.
       Mas não de qualquer mulher, percebeu. Somente uma, dentre todas, poderia salvá-lo. Adrienne.
       Ela estava em seus sonhos, a seu lado, com os olhos radiantes iluminando seu caminho. Os cabelos alvoroçados pelo vento contrastavam com o azul profundo do céu. A voz suave acariciava-lhe os ouvidos como uma doce melodia.
       Hawke se lembrou das horas em que havia esperado no bote do Sans Felicia, até encontrar o momento oportuno para mergulhar novamente e abordar o galeão pirata. Por mais que dissesse a si mesmo que seu dever como capitão do navio era resgatar a tripulação, sabia que a força maior que o motivara a lutar era Adrienne, prisioneira de seu inimigo.
       Hawke se inquietou, e os pensamentos angustiantes confundiam-se com pesadelos em seu sono perturbado.
       Quando ela descobrira que seu pai havia traído a família Valcon?
       Não havia dúvida de que fora sincera. Quando de Barrios revelou a cruel verdade, a decepção nos olhos azuis demonstrou que também se sentia traída pelo pai.
       Uma onda de culpa misturou-se à dor e aos receios que oprimiam seu peito. Culpa, pelos anos que havia viajado pelo continente, quando deveria estar no castelo, cuidando da propriedade, em vez de abandoná-la.
       Ele era tão culpado quanto o pai de Adrienne.
       Além disso, como poderia acusá-la pelos crimes que ela não cometera?
       Lembrou-se da amargura e da vergonha nos olhos inocentes quando a verdade foi revelada. Ela também sofrera, assim como ele. A dor se intensificou, fazendo com que voltasse ao abismo escuro.
       Hawke sentiu o contato macio e fresco de uma toalha em sua fronte. Incapaz de abrir os olhos, ele respirou fundo, enquanto a voz suave sussurrava palavras de conforto, aliviando seu tormento.
       — Descanse, meu amor. Prometo que você ficará bem.
       Sim, pensou, lutando contra a escuridão. De alguma forma, aquela voz o impulsionou a ganhar forças. Tinha de reaver Warrick.
       Após o que lhe pareceu uma eternidade, conseguiu abrir os olhos e deparou-se com o rosto preocupado de Artois.
       — Mon Dieu! Está acordado, capitão! — soou a voz carregada de alívio.
       O chefe da cozinha apanhou uma terrina com sopa e a levou para perto da cama.
       — Você tem de comer — disse com autoridade, levando uma colher à boca do capitão. — É preciso se recuperar logo. Vamos, abra a boca.
       Com esforço, Hawke engoliu o caldo, sentindo-se revigorado depois de algumas colheradas.
       No entanto, suas pálpebras pesadas insistiam em se manterem fechadas.
       — Ele acordou! — ouviu Artois anunciar, como se a voz viesse de um lugar longínquo.
       Com esforço, abriu os olhos e reconheceu Bradford entrando na cabine. Seu amigo parecia fatigado, mas era evidente o brilho de orgulho em seus olhos.
       — É bom tê-lo de volta, capitão — disse o primeiro imediato, sentando-se na beirada da cama.
       Atrás de Bradford, Hawke avistou Pete, Busche e outros homens da tripulação.
       Uma tristeza profunda oprimiu seu coração ao pensar que colocara aqueles homens em perigo. Fitou-os um a um, reconhecendo o brilho de orgulho e gratidão nos rostos sofridos.
       — Vamos chegar à costa de Bristol dentro de algumas semanas, capitão — Bradford comunicou com um sorriso satisfeito.
       Ele assentiu com satisfação. Sentira a ondulação suave da embarcação enquanto dormia, e soubera instintivamente que o Sans Felicia seguia para a Inglaterra.
       No entanto, não se lembrava de ter dado ordens para que seguissem aquele rumo. Recordava-se vagamente de quando fora transportado de volta, e de ecos da voz feminina, a mesma que embalara seu sono.
       — Quem está no comando? — indagou, mesmo sabendo a resposta.
       — Srta. Adrienne. Ela assumiu com meu consentimento.
       Uma inflexão de dúvida se evidenciou na resposta do primeiro imediato, mas ele estava preparado para defender a decisão. Para sua surpresa, Hawke apenas assentiu.
       — Vencemos a batalha, capitão! — Aliviado, anunciou com orgulho. — El Diablo Dorado naufragou, consumido pelo fogo; e os homens que sobreviveram estão presos no porão.
       — E quanto ao capitão de Barrios?
       — Está encarcerado com seus homens. Adrienne o feriu gravemente. Ela salvou sua vida, capitão.
       Ele fechou os olhos por um momento, agradecendo-a em uma prece silenciosa. Ao abri-los, olhou ao redor, para os homens que restavam depois da batalha.
       Oito anos atrás, eles haviam se tornado marujos, abandonando tudo que tinham para segui-lo em sua jornada pela honra. Sabia que aqueles valorosos guerreiros ansiavam por voltar para casa, tanto quanto ele próprio.
       — Não vamos mudar o curso — afirmou, observando o alívio no rosto dos homens. — Prometi que voltaríamos para Warrick, e manterei minha palavra. Considerem-se afortunados por Adrienne não exigir que voltassem para a colônia.
       Radiantes, os homens da tripulação saíram da cabine, felizes pelo destino e pela recuperação de Hawke.
       Um sentimento de gratidão pouco familiar invadiu seu peito. Embora o conflito final o esperasse quando chegassem ao castelo, sentia-se reconfortado por ter vencido a batalha com de Barrios.
       — O que vai fazer agora, capitão? Como pretende exigir suas posses se não há nada que possa provar sua herança nobre?
       Hawke passou a mão pelo rosto, sentindo-se cansado. Encarou o amigo, sem ter resposta.
       — Pretende lutar pelas terras? Sei que não é seu plano original, mas...
       — Não — afirmou, compreendendo a hesitação do primeiro imediato. — Já tivemos violência demais.
       Ele havia percebido que havia outras saídas, e tal noção se fortificara ao pensar na discreta dignidade de Adrienne.
       — E quanto Adrienne? — Bradford indagou, como se lesse seu pensamento. — Quando tudo isso acabar, o que acontecerá com ela?
       Hawke percebeu que o respeito e carinho de seu amigo também se consolidara durante aquela jornada. Bradford preocupava-se com o futuro dela, e a afeição não mudara mesmo sabendo das circunstâncias que a motivaram a viajar para a Inglaterra.
       Uma risada escapou de seus lábios. Ele a raptara, recusara-se a deixar que abandonasse sua embarcação, a impedira de voltar para a colônia e a forçara a permanecer a bordo em New Providence, quando ela poderia facilmente embarcar em algum navio que estivesse a caminho da Virgínia. Em troca, ela lhe dera coragem e lealdade, conquistara a afeição de sua tripulação e lutara ao lado dele como se sempre tivesse feito parte de sua vida.
       No entanto, Hawke não estava preparado para revelar sentimentos que ele próprio mal podia entender.
       — Onde está ela?
       — No convés, capitão.
       — Peça para que venha até aqui.
       Hawke fechou os olhos, tomado por uma súbita vertigem. Percebeu vagamente que o primeiro imediato saíra da cabine, e afundou a cabeça no travesseiro, tentando ignorar a profunda escuridão que se abateu sobre ele. A dor lancinante em seu peito se tornou insuportável e lutou bravamente para manter a consciência.
       Sim, tinha algumas perguntas destinadas a Adrienne. Estava na hora de descobrir por que ela decidira voltar com ele para casa. E foi a última coisa que pensou antes de mergulhar novamente na escuridão.
       
       
       Capítulo VIII
       Adrienne abaixou o livro de poesia.
       Era quase um milagre que ainda estivesse com ela, pensou com um sorriso. Costumava abri-lo para ler em voz alta, esperando que o som da sua voz trouxesse conforto para Hawke durante seus agonizantes momentos de inconsciência.
       Os dias se tornaram semanas, quando tudo que ela podia fazer era sentar ao lado dele e esperar.
       Alisou a capa do livro, pensativa. Como ele fora parar na biblioteca de seu avô? Assim como muitas outras, a pergunta permaneceu sem resposta.
       Relia com freqüência os versos ansiosos por encontrar o amor, que Hawke escrevera quando era mais jovem.
       Porém, lia para si. Pronunciar as palavras românticas em voz alta sugeria uma intimidade que ela receava não ter o direito de exigir do homem adormecido ao lado dela.
       Num impulso, abriu o livro na página que já havia decorado e se pôs a ler. Mesmo conhecendo todas as letras, releu com o mesmo interesse que tivera na primeira vez. Estava tão compenetrada na leitura que não percebeu os olhos pousados sobre si.
       Ao fechar o livro, soltou uma exclamação de alegria ao ver que Hawke havia despertado. Os olhos azuis provocaram a mesma sensação de estar mergulhando nas águas profundas do mar.
       Ele permaneceu em silêncio por longos minutos, e fez menção de se pôr de pé.
       — Fique deitado — Adrienne ordenou, sentando-se na cama. — Você ainda está fraco para se levantar.
       — Vejo que outra peça da coleção saqueada está com você — ele comentou, apontando para o livro.
       — Estava na biblioteca de meu avô. Encontrei o anel atrás deste livro na noite que planejava deixar o Solar Leslie.
       Adrienne abaixou os cílios, receando a censura nos olhos dele.
       — Pelo visto, você se tornou guardiã de diversos tesouros dos Valcon — Hawke comentou com expressão grave.
       Ela se lembrou dos anéis, que mantinha guardados em segurança no bolso da calça. Entretanto, julgou que não era o melhor momento para entregá-los, receando que Hawke acreditasse que estavam com ela desde o princípio.
       — Como se sente? — indagou, colocando distância entre eles.
       — Muito melhor.
       — Fico aliviada por saber. Confesso que houve momentos em que temi por sua vida.
       Ela se levantou, passeando com impaciência pelo aposento. Seu maior desejo era gritar de alegria por ele ter voltado à consciência, e revelar o quanto o amava. Em vez disso, sufocou o sentimento diante da frieza com que Hawke lhe dirigia a atenção.
       — Ainda sinto uma dor profunda...
       Preocupada, ela se aproximou e tocou-o no ombro. Talvez ele estivesse com algum ferimento interno mais sério.
       — É mesmo? Onde está doendo?
       — Aqui...
       Hawke estendeu o braço e segurou-a pelo pulso, trazendo a mão para seu peito. O calor da palma macia penetrou através do tecido, e ele sentiu-se renascer. Pressionou a mão com força, impedindo-a de retirá-la, e só então Adrienne percebeu que caíra numa armadilha.
       — Sentiu minha falta? — ele provocou com um sorriso.
       — Não.
       Irritada por Hawke brincar com seus sentimentos, tentou se desvencilhar, mas ele a segurou com firmeza, puxando-a sobre o peito.
       — Estamos próximos da Inglaterra, não é? — sussurrou, beiiando-lhe o lóbulo da orelha.
       — Sim. Bradford confirmou hoje de manhã.
       — E foi você quem deu ordens para que seguíssemos para cá, certo?
       — Si... sim — ela respondeu hesitante.
       Hawke puxou-a para mais perto.
       — Então, você concordou?
       — Concordei? — ela franziu o cenho, curiosa. — Do que está falando?
       — Em ir comigo para Warrick.
       Ela suspirou, resignada.
       — Vou apenas buscar respostas para os crimes que meu pai cometeu, e nada mais.
       — Se quer respostas, vamos encontrá-las juntos.
       — Não vou exigir sua hospitalidade além do que mereço. — Ela o encarou com desconfiança. — Hawke, por que está fazendo tudo isso por mim?
       — Porque seu pai traiu a nós dois.
       O rosto de Adrienne revelou o choque provocado pela revelação. Ele a teria realmente perdoado?
       Afundando o rosto no peito largo, ela inalou o perfume másculo, desejando estar nos braços dele mais uma vez.
       — Obrigada — sussurrou.
       — Ah, Adrienne, como senti sua falta!
       — Tive tanto medo que você morresse!
       — Não, meu amor. Seu toque foi o bálsamo que me curou.
       
       
       Momentos mais tarde, exaustos e saciados após terem feito amor, permaneceram em silêncio, com a respiração ofegante.
       Adrienne se levantou e procurou as roupas espalhadas pela cabine, sem notar que era observada.
       — Aonde vai? — Hawke quis saber ao vê-la apanhar a calça.
       — Tenho algo para lhe mostrar. — Ela se sentou ao lado dele. — Quando disse que me tomei guardiã dos tesouros dos Valcon, você estava certo.
       — O quê...?
       Ela enfiou a mão no bolso e retirou um dos anéis.
       — Reconhece isto?
       — Sim, é o anel que eu lhe dei — ele disse com impaciência, puxando-a para perto. — Pensei que o tivesse perdido na batalha.
       — Meu pai estava em posse deste anel, junto com outros itens que ele pegou de sua família quando viveu em Warrick. Você me disse que havia dois...
       — Sim. Aonde quer chegar?
       — Acredito que meu pai deixou um deles escondido na biblioteca como garantia, caso seu retomo não fosse desejado no castelo.
       Hawke assentiu, fitando-a com interesse.
       — Papai viajou com o outro, para devolvê-lo ao duque, mas o capitão de Barrios o roubou antes de fazer com que saltasse do trampolim em mar aberto.
       Hawke olhou para ela, comovido ao ver as lágrimas molharem o rosto adorável.
       — Ele levou mais do que a vida do meu pai. Mas, agora, não importa mais. Ao menos, consegui resgatar isso.
       E retirou do bolso o segundo o anel, diante do olhar perplexo de Hawke.
       Um misto de surpresa e orgulho atravessou o rosto viril quando sentiu o peso da jóia na palma da mão.
       Hawke colocou os anéis no dedo e, unidos, formaram o brasão da família. A jóia, um simples ornamento em si, parecia reluzir em todo seu esplendor no dedo dele.
       — Você não está feliz? — ela indagou, confusa diante da reação introspectiva. — Quando chegarmos, você poderá provar que tem direito às terras.
       — Sim, era o que eu pretendia quando iniciei minha jornada, minha doce e corajosa Adrienne. — Ele tocou-a de leve no rosto. — Levei oito anos para encontrar as provas definitivas e, graças a você, finalmente poderei resgatar as terras e honrar a memória de meu pai.
       
       
       Adrienne olhou pela janela da carruagem, admirando a paisagem. À medida que avançavam, a brisa salgada da maresia era substituída pelo perfume da grama verdejante.
       Ela fechou os olhos e respirou fundo, enchendo os pulmões com os aromas ricos da terra e das árvores. Mal podia conter a excitação. O que encontrariam quando Hawke e seus homens chegassem a Warrick?
       A idéia de visitar o castelo a excitava. No momento, desejava se limitar a pensar apenas naquilo. Seus planos para o futuro não se estendiam além daquela viagem.
       Ela passeou os olhos pelas plantações viçosas e se ajeitou no banco da carruagem, sentindo o corpo dolorido.
       Ao atracarem no cais de Bristol, Hawke alugara uma carruagem para levá-la ao vilarejo mais próximo, receando permanecer na cidade. A carruagem seguia pela estrada tortuosa havia mais de uma hora, e ela ansiava por um banho e uma cama.
       Olhou para Hawke através da janela. Ele seguia ao lado do coche montado em um garanhão, adiantando-se ocasionalmente para se certificar de que não havia nenhum perigo, e voltando para perto da carruagem.
       A longa viagem a deixara exaurida. Como se não bastasse a exaustão dos músculos doloridos, a carruagem sacolejava na estrada esburacada, aumentando seu desconforto. Porém, agradeceu à sorte por estar acomodada no banco protegido do interior. Os homens que cavalgavam ao lado de Hawke não dispunham do mesmo conforto.
       Ao perceber que a diligência parou, ela abriu a porta, ansiosa por descer, e Pete se aproximou para ajudá-la.
       Alongou os músculos doloridos e olhou com esperança para a construção de pedras na entrada do vilarejo.
       Um rapaz correu na direção deles, prontificando-se a cuidar dos cavalos.
       — Onde está o capitão? — Olhou ao redor, sem avistar Hawke.
       — Ele pediu que a avisasse que teve de resolver negócios urgentes e a encontrará mais tarde.
       — Oh, é claro! — concordou, tentando esconder a decepção.
       Adrienne alisou a barra da blusa, convencendo-se de que ele agia para protegê-los. Afinal, um grupo de viajantes anônimos chamaria menos atenção sem Hawke.
       No entanto, mesmo que a razão lhe oferecesse fundamentos suficientes, seu coração se encheu de dúvidas.
       Não mais estavam em alto mar. Haviam chegado à terra em que Nicholas nascera, pela qual investira oito anos de sua vida para reaver o que lhe era de direito. Ali, outra realidade os esperava, e tudo que vivera com o capitão poderia se transformar em meras lembranças de uma inesquecível aventura.
       — Vou acompanhá-la à hospedaria — Busche ofereceu, tomando-a pelo braço.
       A simpática senhora que os aguardava à porta da construção saudou-os com um sorriso.
       — Bem-vindos à hospedaria Bayberry. Como se chama, senhorita?
       — Adrienne Leslie — ela respondeu com cautela. — Peço permissão para me hospedar esta noite.
       Adrienne olhou ao redor, percebendo que estava sozinha. Pete e Busche voltaram para o Sans Felicia, ancorado no cais de Bristol. A embarcação precisava de reparos e a tripulação permanecera no navio, com exceção de seis marujos que Hawke destacara para acompanhá-lo.
       — Leslie... — a mulher refletiu ao conduzi-la ao quarto. — Esse sobrenome é familiar. Ah, sim! Charles Leslie.
       Adrienne se deteve à porta do aposento e fitou-a com surpresa.
       — Ele se hospedou aqui, muitos anos atrás. Estava de partida para a colônia, pelo que me lembro.
       — Charles Leslie era meu pai — Adrienne, murmurou, sentando-se na cama.
       — Oh, é mesmo? Ele estava acompanhado por uma jovem de cabelos negros como os seus, e os mesmos olhos... Era sua mãe?
       — Sim — ela respondeu, sem esconder a emoção.
       Uma súbita saudade de casa a invadiu.
       — Oh, como estavam apaixonados! Eu indaguei se ele ia para a colônia fazer fortuna, como a maioria dos homens que se aventuravam para lá, e seu pai respondeu: "Não. Toda fortuna de que necessito está comigo". — A mulher sorriu com ternura e estendeu a mão para Adrienne. — É um prazer hospedá-la, srta. Leslie. Meu nome é Mary Ann Farley.
       Adrienne se levantou para cumprimentá-la, agradecendo-a secretamente pela informação. As palavras daquela senhora suavizaram o sentimento de desamparo e solidão que a oprimiam desde que desembarcara na Inglaterra.
       — Sabe mais alguma coisa sobre meu pai? — arriscou-se a perguntar.
       — Bem, ele disse que estava a caminho do norte. O plano dele era embarcar para a colônia. — A senhora se aproximou, abaixando o tom de voz. — Acredito que sua mãe estava grávida.
       — Mamãe estava grávida? — ela ecoou, sentindo os olhos marejarem.
       — Sua mãe era uma dama, filha da aristocracia. A família Montgoméry era respeitada em toda a Inglaterra, enquanto seu pai... — A senhora ergueu os ombros. — Ele não passava de um humilde cavalariço. Mais tarde, descobri que a fuga do casal no meio da noite provocou escândalo. Sempre me perguntei por que fizeram isso...
       Emocionada, Adrienne abaixou o rosto para esconder as lágrimas. Durante a vida toda, acreditara que seu pai fora filho dos nobres que habitavam o encantador castelo.
       Uma dama e um cavalariço... Sim, eles fugiram para um lugar em que ninguém os conhecesse, para começarem uma vida nova onde pudessem ser iguais.
       — Melinda, minha neta, trará água quente e toalhas para o banho. — A gentil anfitriã a fitou com preocupação. — Espero que não tenha ficado aborrecida com o que eu disse...
       — Oh, claro que não! — Adrienne tentou sorrir. — Estou apenas cansada.
       — Hum... Está bem. Minha neta virá dentro de instantes.
       Ela assentiu e se aproximou da janela. Abriu-a e respirou o ar puro, observando o movimento de alguns pedestres na praça, a poucos passos dali.
       Recostou-se no postigo, pensando no que acabara de ouvir.
       Seu pai construíra uma história irreal, na qual o humilde serviçal dera lugar a um nobre. Criara mentiras para mascarar a diferença de classes sociais, construindo um mundo de ilusões e fantasias no qual ela e sua própria mãe acreditaram sem hesitar.
       Na certa, ao fugir do castelo com a nobre dama, ele levara consigo o anel e o livro de poesias para impressioná-la, os mesmos que encontrara na biblioteca do avô.
       O que mais teria usurpado do castelo?
       O bastante para comprar terras na colônia e construir o Solar Leslie, respondeu para si, pesarosa. Sim, seu pai era um ladrão!
       Com lágrimas nos olhos, ela se lembrou da noite em que ele partira para a Inglaterra no navio cargueiro ancorado na baía. Aquela fora a última vez em que o vira.
       Vou corrigir um erro que há muito foi cometido, minha querida. Quando eu voltar, não haverá mais nada para temermos.
       Comovida, lembrou das palavras dele ao se despedir. Sim, agora compreendia... Ele pretendia procurar o conde Valcon para devolver o que havia roubado.
       Dois anos depois do desaparecimento do pai, seu avô chegou ao solar, disposto a levá-las para a Inglaterra. No entanto, sua mãe resistira em partir, e ele acabara ficando na colônia, passando a administrar o solar e a produção de tabaco que seu pai cultivara na propriedade.
       Adrienne olhou pela janela, sem que seus olhos registrassem o que via.
       Por que seu pai enganara a ela e a sua mãe durante todo o tempo? Por que as fizera acreditar que havia uma história romântica e encantadora, quando seu passado não guardava nada além de desonra e traição?
       Batidas à porta a tiraram dos devaneios e ela se apressou em atender.
       — Senhorita, meu nome é Melinda e este é meu irmão, Robert.
       Uma jovem, com os cabelos presos em uma modesta touca, inclinou-se em uma mesura. Ela carregava toalhas e uma barra de sabão para o banho. A seu lado, o rapaz que se oferecera para cuidar dos cavalos, momentos atrás, a fitava com um sorriso.
       — Encha a tina, Robert — a jovem ordenou com ar de superioridade.
       Ele carregou os dois baldes de água quente para despejá-los na tina de madeira ao lado da janela.
       -Trarei o jantar mais tarde, senhorita. O francês que veio com a caravana expulsou o cozinheiro e está preparando a refeição. Disse que a senhorita tem estômago delicado e somente ele conhece seu paladar.
       Adrienne não conteve um sorriso diante do comentário. Notou que a jovem a observava com interesse, sem fazer menção de ir embora. Ela sorriu, sem tirar os olhos de seus cabelos.
       — Oh, seus cabelos são lindos!
       Num gesto involuntário, Melinda tocou as mechas caídas sobre os ombros.
       Embora ainda usasse roupas masculinas, Adrienne havia retirado o chapéu de três pontas quando estava na carruagem.
       — Posso penteá-los amanhã, se a senhorita permitir. Ainda estará aqui?
       — Creio que sim.
       — Para onde está indo?
       — Warrick.
       Adrienne franziu as sobrancelhas ao ver a expressão de alarme no rosto da jovem.
       — Há algo errado?
       — Não! — Melinda evitou seu olhar. — Quero dizer, bem... Dizem que o herdeiro da propriedade viajou para o mar depois da morte do pai e de ter sido abandonado pela noiva. Ele nunca mais retornou, e, agora, o fantasma dele assombra o castelo.
       — Fantasmas não existem, Melinda.
       — Oh, sim! Eles existem, senhorita. Billy Craven e mais alguns rapazes da aldeia foram até lá certa noite. Voltaram apavorados, dizendo que haviam visto o fantasma.
       — Você acha que ainda há alguém vivendo lá?
       — Não. Quem viveria em um castelo assombrado por um fantasma?
       
       
       Na manhã seguinte, Adrienne se submeteu à longa sessão de penteado, enquanto ouvia Melinda falar sobre o terrível fantasma que assombrava o castelo.
       Depois do banho, vestiu roupas limpas e tomou o café-da-manhã na mesa da hospedaria.
       Horas mais tarde, Adrienne debruçou-se na janela do quarto, perscrutando a distância com ansiedade. Seu peito estava a ponto de explodir de angústia quando avistou Hawke galopando na direção da taverna.
       Ela correu para a varanda e o observou desmontar.
       — Bom dia. Dormiu bem? — ele saudou, oferecendo-lhe um sorriso.
       — Sim, muito! Estou me sentido renovada. E você?
       Ele a fitou com admiração, acariciando a pele alva com o olhar.
       — Tive muitas surpresas — respondeu simplesmente.
       — A neta da sra. Farley contou-me sobre estranhas ocorrências no castelo Warrick. Há boatos de que é assombrado por um fantasma, e parece estar abandonado há muitos anos.
       — Eu também ouvi boatos perturbadores nas tavernas e estábulos.
       — O que faremos, Hawke?
       Ele a fitou com ternura e estendeu a mão para tocar de leve os cachos bem-feitos do penteado.
       — Vamos enfrentar nosso destino.
       Adrienne abaixou o rosto. Ainda não estava certa de que Hawke a perdoara, e receava pelo momento em que chegassem ao castelo. Rodeado pelo esplendor e pela glória que envolvia seus ancestrais, ele teria a mesma disposição em aceitá-la?
       — Onde estão os outros? — indagou, fugindo das incertezas perturbadoras.
       — Bradford está supervisionando o transporte da nossa bagagem e dos mantimentos, e Artois seguiu ontem à noite para o castelo, com três rapazes da cidade. Tentarão deixá-lo em condições de nos abrigar, até que eu consiga contratar alguém para fazer a limpeza.
       — A que horas chegaremos?
       — A estrada não passa de uma picada, cheia de buracos e curvas. Com muita sorte, estaremos no castelo ao anoitecer. — Ele tocou-a de leve na mão. — Está preparada?
       — Claro que sim.
       Uma carruagem puxada por dois majestosos animais parou diante da hospedaria e Pete saltou da boléia.
       — Vamos.
       Ela se despediu da sra. Farley e de Melinda antes de se acomodar no interior da carruagem.
       
       
       A paisagem desfilava diante de seus olhos sem que ela a percebesse. Adrienne refletia sobre as descobertas assustadoras sobre o passado de seu pai. Porém, mais assustador que o passado, ela receava pelo futuro.
       Hawke parou o cavalo ao lado da carruagem e ela se debruçou na janela com um sorriso.
       — Por que não vem comigo? — ele indagou, estendendo o braço na direção dela.
       Sem hesitar, Adrienne abriu a porta e se equilibrou no degrau da carruagem. Sem soltar as rédeas do cavalo, Hawke a enlaçou pela cintura para colocá-la com gentileza sobre a sela.
       — Então, o que acha?
       — A paisagem é bonita, mesmo no inverno. Ainda estamos muito distantes do castelo?
       Como resposta, Hawke apontou para uma construção à frente. Adrienne cobriu a boca com as mãos, horrorizada com o que viu.
       Destruído pelo tempo, o que restava das duas imponentes torres não passava de ruínas. Grandes blocos de granito jaziam no chão, e o portão de ferro da entrada pendia do beiral enferrujado.
       — O que aconteceu? Seu castelo está destruído!
       Porém, ao se voltar para ele, em lugar da decepção, vislumbrou o brilho de orgulho nos olhos claros.
       — Está desapontada?
       — Bem, eu... Eu não esperava que estivesse tão... — Ela se calou, arrependida pelo comentário. — O que aconteceu com a fachada?
       — O castelo está abandonado desde que parti.
       — Oh... Eu sinto tanto!
       Grossas lágrimas brotaram de seus olhos, e Hawke segurou-a pelo queixo.
       — Não chore, meu amor. Nós vamos reconstruir Warrick.
       — Sim, eu sei. Não é por isso que estou chorando. — Ela respirou fundo, sentindo o peito oprimido pela tristeza. — Para mim, não tem sido fácil lidar com tudo que descobri. Tudo que meu pai me disse não passava de mentira!
       — Não, meu amor — Hawke disse com simpatia. — Ele simplesmente contou suas histórias, tentando preencher a imaginação de uma criança com sonhos agradáveis.
       — Não quero que sinta pena de mim! — ela reagiu, irritada. — Em vez de defendê-lo, por que não olha para o que ele fez? Não se sente abalado ao ver tanta destruição?
       — Não. Sinto-me desafiado a reconstruí-lo.
       Hawke saltou do cavalo e estendeu a mão para ajudá-la a desmontar.
       O vento gélido do inverno fustigava a escuridão profunda da noite.
       Ele pisou, pela primeira vez depois de oito anos, no solo recoberto de gelo.
       Seu peito se inundou de emoção. Ele não era mais o mesmo rapaz que deixara aquelas terras. A longa jornada o transformara em um homem decidido e audacioso, perseguindo seu sonho impossível através dos mares que o trouxeram de volta para casa.
       — Hawke, você está bem?
       A voz suave o aqueceu, e ele sorriu ao ver Adrienne a seu lado. Não deixou de notar os ombros delicados rígidos pela tensão e abraçou-a com carinho.
       — Sim, minha doce Adrienne. Agora, eu estou bem.
       
       
       Capítulo IX
       Hawke vislumbrou o portal do castelo e seu coração se apertou no peito. A próspera propriedade de sua infância agora era guardiã de muitos segredos.
       Não havia serviçais esperando para saudá-lo. Apenas o silêncio o recepcionou.
       Adrienne o fitou em expectativa, e ele receou mais uma vez pela reação dela. Teria vislumbrado o brilho do desapontamento nos olhos azuis?
       Passou o braço pelos ombros delicados e a conduziu para os degraus da entrada.
       O som da carruagem sumiu na distância enquanto Pete guiava os cavalos para os estábulos, e desejou que a estrebaria estivesse em boas condições para abrigar os animais.
       Deteve-se diante da porta por um momento, num respeitoso silêncio. O brasão da família entalhado na madeira permanecera intacto, como uma passagem que o transportaria do passado para o presente. Dois falcões de asas abertas, lado a lado, erguiam as cabeças ativas, simbolizando a força e a honra da família Valcon por mais de quatro séculos.
       — Lorde Nicholas Valcon — Adrienne disse com suavidade. — Bem-vindo de volta ao lar.
       Ele sorriu, enternecido, e o estímulo lhe deu coragem para prosseguir. Pousou a mão na maçaneta e não se admirou ao constatar que a porta não estava trancada.
       Artois os recebeu com um candelabro que iluminou o caminho no interior sombrio do castelo.
       — Alteza...
       O cozinheiro inclinou a cabeça, incapaz de esconder o prazer evidente em seu rosto. O chefe da cozinha nunca gostara do mar.
       — Fiquem com as velas. Se me derem licença, vou voltar para a cozinha e terminar o jantar.
       Hawke apanhou o candelabro e atravessou o hall de entrada.
       Os passos ecoaram pelos corredores escuros. O castelo estava frio e esquecido, como se estivesse à espera de Hawke para retornar à vida.
       Ele se deteve no salão principal, banhado pelo luar que transpassava o vitral colorido. A sala adjacente era reservada à coleção de armas de seu avô. Avaliou-a rapidamente, satisfeito ao perceber que permanecera intacta.
       Adrienne se aproximou para caminharem juntos pelas sombras até a escada que levava ao segundo piso.
       — Os quartos deverão servir para passarmos a noite e descansarmos — ele disse, respondendo a pergunta silenciosa. — Os rapazes tentaram fazer o melhor que puderam, mas vou contratar alguém no vilarejo para terminar a limpeza amanhã.
       — Creio que conseguiremos sobreviver por uma noite — ela comentou, olhando para as nuvens de pó que se erguiam ao pisarem no chão.
       Hawke abriu a porta do quarto principal e sorriu ao ver o fogo crepitar na lareira. As cortinas pesadas haviam sido afastadas da janela, permitindo a entrada de ar. O amplo aposento, com a imensa cama ao centro, parecia estar à espera deles.
       — Oh, é maravilhoso! — Adrienne exclamou, encantada. Embora fossem evidentes as marcas do tempo e do abandono, o quarto ainda conservava o luxo de outrora. Ela rodopiou, com uma risada que preencheu o ar. — Quero conhecer cada recanto deste castelo!
       — Você conhecerá, minha querida. Poderá fazer isso amanhã cedo.
       Hawke a fitou com doce ternura. Ele mesmo mostraria a propriedade, desde o bosque de mata virgem até os corredores e passagens secretas que costumava explorar quando criança.
       Seus olhos pousaram na graciosa linha do pescoço, nas mechas aneladas que contrastavam com a pele alva.
       Adrienne havia prendido os cabelos e vestira traje formal, elegante e civilizado, que causara verdadeiro impacto quando a encontrara pela manhã.
       Estava mais linda do que nunca, mas parecia distante vestida daquela forma. Aquela não era a mesma mulher que conhecera em seu barco, alegre, livre, confiante... O brilho inconfundível da tristeza obscurecia as íris translúcidas.
       — Você está bem? — perguntou, puxando-a para perto.
       — Sim. Estou apenas cansada.
       Ela virou o rosto, fingindo estar interessada na decoração do quarto. Não conseguiria esconder de Hawke a tensão que a consumia por não saber o que o futuro lhe reservava.
       — Você ficará comigo esta noite.
       A afirmação teve o efeito de um bálsamo, acalmando-a. Sim, ele ainda a desejava, ao menos, por uma noite!
       — Talvez eu não queira ficar... — ela replicou com um sorriso de provocação. — Tenho medo de fantasmas.
       — Você não terá nada a temer enquanto estiver comigo.
       Ela riu e o som reverberou nas paredes frias.
       — Você me causou mais problemas do que posso me lembrar, capitão Hawke!
       Ele a abraçou com ternura e a conduziu para a cama.
       Mais tarde, com Adrienne dormindo em seus braços, Hawke fechou os olhos.
       Sim. Ele voltara para casa.
       
       
       Adrienne cruzou os braços sobre o peito. O ar frio da manhã permeava o ar e ela apressou o passo enquanto caminhava para os estábulos.
       A névoa desaparecera subitamente, revelando o começo de um brilhante dia de sol.
       Ela se deteve para a admirar o castelo. Era ainda mais maravilhoso do que imaginara. Duas torres de pedra na entrada erigiam-se imponentes contra o céu azul. Mesmo castigada pelo tempo, a construção guardava o esplendor e a glória dos homens e mulheres que ali viveram durante séculos.
       A risada dos homens que trabalhavam na restauração do castelo chamou-lhe a atenção. Ela seguiu seu caminho, atravessando o jardim que começava a reviver.
       Quase não estivera com Hawke depois do dia em que chegaram. Ele aparecia ocasionalmente para as refeições, e orientava os homens que trabalhavam na restauração. Contratara serviçais e enchera o estábulo com magníficos animais.
       Ela sabia que estava cansado, mas via o brilho inegável da alegria nos olhos dele.
       O fato era que a propriedade ainda não pertencia a Hawke. Tal noção a preocupava, tirando-lhe o sono.
       Ele fora procurar um magistrado da coroa e solicitara audiência, com a intenção de confirmar sua procedência nobre. Além dessa informação, não sabia o que ele tinha em mente, apenas que se dedicava ao castelo em tempo integral.
       Aproximou-se do estábulo e avistou a elegante égua acinzentada, dócil e gentil, que Hawke havia adquirido especialmente para ela. Montou com agilidade e deixou que o animal galopasse livre pela ravina.
       Deteve-se no alto de uma colina e vislumbrou o castelo por entre as árvores. A distância, ele parecia ainda mais imponente.
       Ela respirou o ar fresco da manhã. Mesmo consciente de que seu futuro ainda era incerto, decidira viver um dia após o outro, preocupando-se apenas com o presente.
       De súbito, o ruído de passadas sobre as folhas a distraiu. Um vulto se destacou entre as sombras e ela desmontou, curiosa.
       Aproximou-se e avistou uma jovem de traços delicados e longos cabelos dourados caindo sobre os ombros. Ela usava traje de montaria e seguiu com seu cavalo até a encosta escarpada de onde se avistava o mar.
       — Olá — disse sem se voltar, percebendo a presença de Adrienne. — Você vem sempre aqui?
       — Não. Estive apenas uma vez. E você?
       A mulher virou o rosto e fitou-a com olhos pálidos, que revelavam profunda tristeza.
       — Costumo vir com freqüência, desde que...
       Ela se calou e seu olhar procurou o horizonte, buscando alguma evidência, como se esperasse que uma embarcação aparecesse na superfície.
       — Você já perdeu alguém que ama no mar?
       — Sim. Meu pai partiu e nunca mais voltou.
       — Aconteceu o mesmo comigo. Quem eu amava partiu e nunca retornou. — Oh! Como fui tola — a jovem cobriu o rosto com as mãos, tomada por uma dor pungente. — Se eu soubesse das terríveis conseqüências de meus atos...
       Sensibilizada, Adrienne se aproximou e pousou a mão no braço frágil.
       — Conte-me o que aconteceu. Talvez a faça se sentir melhor.
       Um silêncio carregado de tensão pairou no ar, até que fosse rompido pela voz entoada em um sussurro:
       — Anos atrás, fiz parte de um ardil cruel, sem me importar com as conseqüências — suspirou reunindo forças para prosseguir. — O plano era que eu seduzisse e me casasse com um nobre, para herdar seu nome e sua fortuna. Mas não pude concluí-lo. Eu me apaixonei e tomei-me vítima da minha própria armadilha. A única saída que tive, foi abandonar o homem que amava e enfrentar a fúria do algoz que conspirava contra ele.
       — Quem desejava usá-la em um plano tão cruel? — Adrienne indagou, indignada.
       — Meu próprio pai.
       Elas permaneceram em silêncio, ouvindo apenas o eco da sentença.
       — Tenho de ir — a mulher disse de súbito, puxando as rédeas do cavalo.
       Ela hesitou e virou-se, como se lembrasse repentinamente de onde estava.
       — Por favor, perdoe minha indelicadeza. Ainda não sei seu nome...
       — Adrienne Leslie. E o seu?
       — Oh... — Ela fez um gesto com a mão delicada como se a resposta não importasse. — Sou Felicia Carlyle.
       
       
       O cavalo de Adrienne galopava veloz como um raio, fincando as patas na areia macia da praia. O vento gelado machucava seu rosto, mas ela não se importou.
       — Como fui tola! — balbuciou em meio ao pranto. — Acalentei tantos sonhos e todos em vão! Voltei para uma casa que não é minha, com um homem que nunca foi meu!
       Uma dor profunda cingiu seu peito. Não estava certa sobre qual realmente era sua casa. Na Virgínia, onde jazia outra mentira a esperando, ou na Inglaterra, o lugar em que pertencia seu coração?
       Sentindo-se precipitar em um abismo de solidão, ela puxou as rédeas e desmontou. A égua agitou o focinho com impaciência, excitada pela corrida e Adrienne acariciou-lhe o pescoço.
       — Minha jornada chegou ao fim — murmurou, pensando alto.
       Estava na hora de voltar para sua família. Poderia mandar uma mensagem para seu avô e voltar com ele para casa. A parcela do espólio do El Diablo Dorado a tomara uma mulher independente. Romperia o compromisso com Jonathan e sobreviveria ao escândalo.
       Ela caminhou ao longo da orla puxando as rédeas do animal e seguiu pela areia branca sem pressa de voltar ao castelo. Ergueu o rosto para admirar o mirante, estrategicamente posicionado no topo da pedra mais alta. A vista era perfeita para identificar qualquer embarcação que surgisse nas imediações.
       Decidiu que passaria mais tempo ali, esperando que alguma nau ancorasse na baía de águas profundas, escondida pelo paredão de pedras que a isolava. Assim, voltaria para casa e deixaria de ser um empecilho na vida de Hawke.
       Hawke... Lorde Nicholas Valcon. Ele estava de volta ao lugar ao qual pertencia e sua amada havia esperado todos aquele anos pelo seu retorno.
       Adrienne se lembrou dos traços suaves de Felicia Carlyle. Não, não podia odiá-la. Assim como ela, Felicia era uma mulher apaixonada e havia esperado durante todos aqueles anos pelo seu bem-amado.
       Com o coração oprimido no peito, ela puxou as rédeas da montaria para subir pela passagem estreita em que o declive do terreno dava acesso à campina que circundava o castelo.
       O sol estava se pondo no horizonte, enviando os últimos raios à superfície da água antes de desaparecer sob uma cortina dourada.
       De súbito, julgou ter ouvido vozes. Na certa, vinham dos homens que trabalhavam no castelo, concluiu, seguindo em frente.
       Um arrepio gelado percorreu-lhe a espinha diante da idéia de atravessar a vasta pradaria mergulhada na escuridão. Melinda, a camareira contratada por Hawke, havia lhe contado que vira o brilho de lanternas na baía. Ouvira também os homens do vilarejo que trabalhavam nos reparos comentarem sobre a aparição de espectros dos nobres que ali residiram.
       Ela balançou a cabeça com um sorriso. Tudo não passava de lendas criadas pelo povo simples da aldeia.
       As vozes se tornaram mais nítidas e ela estreitou os olhos para avistar dois rapazes saindo de uma fenda encravada nas pedras junto à praia. Nenhum dos dois possuía fisionomia que lhe fosse familiar.
       O que estariam fazendo ali?
       Ela se encolheu detrás do animal ao notar que caminhavam pela praia na sua direção. Talvez os desconhecidos fossem criminosos, pensou com um arrepio de pavor, agradecendo à sorte por não olharem para cima.
       Ansiosa por fugir dali, ela puxou a rédea com brusquidão. Para seu desespero, o animal empacou, numa recusa obstinada a seguir em frente.
       — Por favor, seja boazinha... — ela sussurrou numa súplica.
       Agitada, a égua se ergueu sobre as patas traseiras e se soltou das rédeas. Galgando com agilidade a subida íngreme, o animal atingiu a pradaria e desapareceu.
       O ruído chamou a atenção dos rapazes e eles se voltaram ao mesmo tempo na direção em que Adrienne se encontrava. Receando ser vista, escondeu-se por detrás das pedras, desistindo de alcançar o prado. Paralisada pelo medo, ela se encolheu sob um nicho, rezando para que os desconhecidos fossem embora.
       — Não há nada aqui — um deles comentou.
       Ela percebeu que estavam a poucos passos, e encolheu-se ainda mais, prendendo a respiração.
       — Continue a procurar. Eu ouvi claramente o galope de um cavalo.
       — Vamos embora. É muito arriscado passarmos deste ponto. O castelo está ocupado.
       — E quanto ao fantasma? Eu juro que vi um cavalo carregando um vulto branco seguindo na direção do mirante!
       — Pela última vez, seu tolo, não há nenhum fantasma! Vamos continuar o trabalho. Temos de carregar o navio antes do amanhecer.
       — Não podemos continuar! O fantasma nos viu!
       — Cale-se, e trate de não comentar isso com ninguém.
       Adrienne sentiu um calafrio. Não havia dúvida de que eram contrabandistas.
       Tinha de voltar ao castelo para avisar Hawke sobre o uso ilegal de suas terras antes que ele próprio fosse acusado. Se fosse incriminado por envolvimento em atividades ilegais, não poderia resgatar suas terras.
       Esperou até que os rapazes se afastassem e saiu das sombras.
       Seguindo a trilha iluminada pelo luar, ela voltou para a praia, escondendo-se nas pedras. Não podia se arriscar a ir pelo prado aberto. Sua silhueta, sob a luz do luar, seria alvo fácil para o marginais.
       Ao passar pela fenda na parede de rochas da qual os dois rapazes haviam saído, ela se deteve e estreitou os olhos, tentando ver o que despertara o interesse deles.
       O luar se refletiu no interior da caverna, e, para sua surpresa, descobriu que o chão estava recoberto de pegadas, indicando intensa atividade. Inúmeros barris e caixas, provavelmente de mercadoria roubada no vilarejo, estavam espalhadas pelo chão. Os malfeitores estavam tão confiantes que não se preocuparam em procurar esconderijo mais seguro, tampouco deixaram alguém vigiando.
       Apressando-se, ela começou a escalar a muralha de pedras quando um grito horripilante cortou o ar.
       A lua cheia, alta no céu, iluminava a baía. Ao longe, em mar aberto, ela detectou a sombra escura de uma embarcação flutuando nas ondas. Diversos botes pequenos estavam presos ao navio, repletos de caixas e barris.
       Ao que tudo indicava, aquele local se tornara o esconderijo efetivo dos contrabandistas. Talvez não fosse tão simples expulsá-los de lá.
       Depois de uma rápida avaliação, ela concluiu que havia mais homens do que Hawke dispunha. Seria impossível vencê-los num embate corpo a corpo.
       De súbito, os contrabandistas que descarregavam os botes pararam o trabalho ao mesmo tempo e se voltaram para a baía. Ela notou que olhavam diretamente para o mirante, e pareciam aterrorizados, como se tivessem visto algo que os paralisou.
       Adrienne girou o corpo lentamente. No platô acima das pedras, o homem que havia gritado apontava para o mirante, com o rosto lívido pelo terror.
       — Fantasma!
       O grito aterrorizante ecoou no ar, deixando Adrienne paralisada. Num movimento sincronizado, os homens no mar saltaram dos botes aos gritos e nadaram com todas as suas energias em direção ao navio, ao mesmo tempo em que uma risada macabra cortava o ar.
       Impulsionada pelo medo, Adrienne subiu a estreita escada de pedra que levava ao mirante, situado no ponto mais alto do paredão de rochas. Talvez conseguisse avistar alguém no castelo, e sinalizar para que fossem até lá. Não se arriscaria a atravessar o prado sem o seu cavalo.
       E, então, ouviu o tropel da montaria bem atrás de si, e um grito de satisfação e triunfo cortou o ar. Ela mal teve tempo de ver o garanhão negro subindo as escadas, montado por um homem envolto em um lençol branco.
       Atônita, galgou os últimos degraus até o topo e uma exclamação de surpresa escapou de seus lábios.
       — Nicholas Valcon, desça imediatamente desse cavalo!
       
       
       Hawke saltou e rodopiou no ar antes que seus pés encontrassem o chão.
       Estava exultante com o sucesso daquela noite. A intensa satisfação de ter um plano bem executado o inundou de alegria. Quando seus pés tocaram o chão, ele trombou em Adrienne.
       — Por Deus, mulher! O que está fazendo aqui?
       Sem esperar que ela pudesse se recobrar do susto e responder, Hawke a puxou para si e mergulhou o rosto nos cabelos perfumados de maresia e brilho de estrelas.
       Beijou-a com paixão, mas ela o repudiou, afastando-se.
       — Hawke, você quase me matou de susto! — queixou-se, ainda com o coração aos pulos. — Por um momento, cheguei a acreditar que havia um fantasma assombrando a baía.
       Ele riu com vontade e beijou-a, ignorando os protestos. A reação fria o frustrou.
       — Adrienne, o que há de errado?
       Ela se afastou e respirou fundo.
       Seu mundo havia desabado, e fora a responsável por sua própria ruína. A culpa não era de seu pai, que a enganara com mentiras e ilusões, nem de sua mãe, tão iludida quanto ela própria, tampouco de seu avô, que a protegera das crueldades do mundo.
       Ergueu o rosto para Hawke, decidida a reprimir a tristeza. Não era justo que toda revolta que a oprimia recaísse sobre o homem que a protegera e recebera em sua casa.
       Não, não tinha o direito de acusá-lo, nem à mulher que o havia esperado por oito anos. Seriam felizes juntos, e caberia a ela enfrentar seu destino ao lado de Jonathan Culverwell.
       — Eu vi os contrabandistas na baía — anunciou, decidida a reprimir o sofrimento. — Tentei avisá-lo, mas você os afugentou antes que eu pudesse chegar ao prado.
       — Adrienne, minha querida... — Hawke puxou-a para perto, ignorando sua resistência. — Destemida, forte e bela Adrienne.
       Ela se deixou abraçar, incapaz de resistir.
       — Veja!
       Hawke apontou na direção do horizonte. Uma segunda nave se destacava a distância. Estreitou os olhos e sorriu ao reconhecê-la.
       — É o Sans Felicia?
       — Comandada por Bradford, tão competente quanto o mais exigente capitão poderia desejar.
       Enquanto falava, ouviram o estampido de um canhão explodir da caravela. O primeiro imediato ordenou o segundo ataque antes que o galeão dos contrabandistas tivesse tempo de escapar.
       — Como eu suspeitava — Hawke disse em tom grave. — Aquela é a embarcação de sir Victor Carlyle. Mesmo que ele não esteja a bordo, seu destino está selado.
       — Carlyle? Ele é...
       — Pai de Felicia — Hawke completou. — A propriedade dele faz divisa com Warrick. Ele se comprometeu a administrar as terras até que eu voltasse...
       — E ele o traiu!
       — Sim. Trair é uma tradição na família Carlyle.
       Adrienne procurou algum traço de ressentimento na afirmação, mas encontrou apenas indiferença.
       — Encontrei-o no vilarejo e ele afirmou diversas vezes que não sabia de nenhum rumor associado ao castelo Warrick. No entanto, descobri que foi ele próprio que espalhou boatos desonrando minha família e espantando todos os que se aproximavam da propriedade.
       — Como você pode saber com certeza?
       — Foi muito conveniente para sir Carlyle usar minhas terras para o contrabando e fazer com que minha reputação se voltasse contra mim. Ele incutiu o terror e zombou da minha memória, aproveitando-se do medo da gente simples e humilde do vilarejo para que isolassem o castelo. — Hawke sorriu, sentindo-se vitorioso. — Ele não contava que eu voltaria para desafiá-lo.
       — Meu Deus, Hawke, ele é, um homem perigoso!
       — Sim, e eu estive fora por muito tempo. Entregar Carlyle à justiça é o primeiro passo para reaver minha herança.
       — Mas ainda há algo que precisa ser solucionado.
       Hawke a fitou enquanto a mantinha presa no círculo de seus braços. O luar refletia-se nas íris claras, revelando o brilho divertido.
       — O que é? — questionou com apreensão.
       Adrienne abriu um sorriso de provocação e indicou com o queixo o animal inquieto à beira da amurada.
       — Como fará para que seu cavalo desça do alto do mirante?
       
       
       Capítulo X
       — Na verdade, a idéia foi de Pete — Hawke confessou com um sorriso, alisando o dorso de seu cavalo.
       O garanhão marchara escada abaixo seguindo o faro de um punhado de cenouras preso a uma vareta bem diante de seu focinho. Ele chegara ao chão em segurança, juntamente com os raios dourados do alvorecer.
       Hawke se acomodou na sela que compartilhava com Adrienne e relaxou as rédeas.
       Não usufruía o calor daquela proximidade havia muitos dias, e a urgência em tocá-la se tornou imperativa. Pousou a mão sobre as pernas bem delineadas sob a calça de montaria e um prazer secreto o invadiu ao pensar que a possuía.
       Apesar dos protestos, percebeu que ela também o desejava.
       — Então, foi Pete quem sugeriu que você cavalgasse feito louco escadaria acima e arriscasse seu pescoço nessa travessura — ela recriminou, voltando-se para ele.
       — Não. A idéia de trazer o fantasma à vida foi minha. Pete sugeriu o cavalo.
       — Hawke, às vezes chego a pensar que você tem a mentalidade de uma criança! — ela comentou com uma risada.
       Ele também riu, dando palmadas amigáveis no pescoço do corcel enquanto ele continuava sua marcha determinada na direção do estábulo.
       Apesar da expressão grave no rosto adorável, vislumbrou o brilho de orgulho no olhar de Adrienne antes que ela abaixasse os cílios e se recostasse em seu peito.
       — Afinal, você tem de admitir que funcionou.
       — Mas não justifica o risco que você e seu animal correram — ela censurou.
       Continuaram em silêncio enquanto o sol surgia no horizonte. Àquela altura, Bradford deveria estar escoltando os prisioneiros da embarcação dos contrabandistas para a baía privativa de Warrick.
       Hawke começara a reaver seu prestígio quando entregara Rogillio Saldania de Barrios e sua tripulação às autoridade de Bristol, logo que o Sans Felicia ancorou no porto. O pirata era o homem mais procurado dos sete mares, e a notícia de sua captura percorreu distâncias com a velocidade do vento.
       Hawke estreitou os olhos, notando que não eram as velas do Sans Felicia que se destacavam no céu. Outra embarcação, com bandeira da colônia, surgia na linha do horizonte.
       Adrienne teve um sobressalto e se apertou mais ao peito largo.
       — Não há o que temer — Hawke assegurou. — Parece ser meu agente da colônia, que recebeu meu chamado e finalmente se apresentou. Ele não podia ter chegado em hora melhor.
       — Seu... agente?
       — Sim, um dos comissários que meu pai contratou para investigar o desaparecimento dos anéis.
       Ele tocou o volume no bolso da calça, onde guardara os anéis heráldicos. Ainda não chegara o momento de colocá-los no dedo.
       — Hawke... — Adrienne sussurrou num fio de voz. — Estou com medo.
       — Não há o que temer, meu amor. — Ele deu uma palmada na anca do cavalo, fazendo-o galopar. — Temos muito a fazer antes que o dia termine.
       
       
       O Elizabeth! Por alguma razão, a aparição da nau de seu avô na baía escondida de Warrick provocou impacto maior em Adrienne do que todos os eventos desde a noite anterior.
       Por que ele estava lá? Talvez as respostas para as perguntas que a atormentavam durante toda sua vida estivessem bem diante de seu nariz!
       Debruçou-se no parapeito da janela do salão principal. Podia ver ao longe os botes do Elizabeth convergindo para a praia, e conteve a urgência de correr até lá, decidida a se fixar em seu objetivo até que obtivesse explicações para o que estava acontecendo.
       Hawke olhava pela janela e fez um gesto para que a camareira se aproximasse.
       — Temos visitantes ancorados na baía. Arrume acomodações para eles. Vou recebê-los na biblioteca logo que chegarem. Diga a Artois que prepare o desjejum e a mesa do salão nobre.
       Adrienne ignorou o gesto indicando para que ela subisse as escadas, e o seguiu até o escritório.
       — Este assunto é privativo entre cavalheiros, Adrienne. — Hawke se sentou diante da escrivaninha, com expressão grave. — Vá para o quarto descansar.
       — Não estou cansada — desafiou-o, sentando-se na cadeira diante dele. — Nicholas, eu conheço .a embarcação ancorada em seu deque. Pertence ao meu avô, sir Alexander Montgomery.
       Hawke franziu o cenho. Levantou-se e se pôs a passear pelo aposento, relanceando o olhar para a janela de tempos em tempos.
       — Sim... Começo a compreender com mais clareza — murmurou, como se pensasse em voz alta. — Sir Alexander Montgomery foi um dos agentes enviados às colônias. Depois da morte de meu pai, oito anos atrás, mandei-lhe uma carta pedindo que viesse à Inglaterra.
       — Meu avô estava incumbido de descobrir o paradeiro de meu pai — Adrienne ecoou com uma risada nervosa. — Meu Deus, Hawke, isso mais parece um jogo bizarro e cruel!
       — Sim. Eu nunca teria associado a nobre família Montgomery ao sobrenome Leslie. Como poderia suspeitar que sir Alexander saíra ao encalço do próprio genro? — inquiriu, voltando a passear pelo aposento. — É uma incrível coincidência, mas creio que ele se arrependeu de ter assumido a missão e, por alguma razão que desconheço, decidiu ficar na colônia. Enviou-me uma única mensagem, declarando que Charles Leslie havia residido na Virgínia, mas voltara para a Inglaterra. Ordenei que retomasse, mas sir Alexander preferiu ficar.
       — Meu avô é um homem nobre — Adrienne enunciou com firmeza. — Estou certa de que não foi fácil decidir-se por desobedecê-lo e manter segredo sobre meu pai. Ele agiu assim para me proteger.
       — Entendo. — Hawke se recostou na escrivaninha e cruzou os braços sobre o peito. — Bem, vamos aguardar. Ele mesmo poder explicar as razões por ter agido como agiu. O fato é que foi a carta dele que me levou à Virgínia.
       Adrienne virou o rosto, evitando encará-lo. Contemplou os primeiros flocos de neve anunciando o inverno, com o pensamento perdido em suas divagações.
       Fora o destino que a levara para o barco de Hawke, concluiu. Se não tivesse sido raptada por Pete e Busche na noite de seu noivado, tudo seria diferente. Os anéis heráldicos ficariam perdidos para sempre, e o castelo de Warrick seria desapropriado passaria a ser propriedade da coroa, fadado ao abandono.
       Depois de sua longa jornada, percebeu que ela fora a responsável por reaver as provas que reafirmavam a nobreza de lorde Nicholas Valcon. Afinal, conseguira reparar parte do mal que seu pai causara àquela família.
       Batidas à porta a distraíram e um serviçal anunciou a chegada de sir Alexander ao castelo.
       De súbito, a realidade se abateu sobre Adrienne. A eternidade que se transcorrera desde que saíra da Virgínia se condensou em um breve espaço de tempo, e ela se lembrou que tinha uma. Sua mãe a esperava, além de seu noivo.
       A saudade e a nostalgia inundaram-lhe o peito quando a porta do escritório se abriu. Mesmo que fosse severamente castigado por sua aventura, um grito de alegria escapou de seus lábios ao ver o avô entrar no aposento.
       — Vovô! — gritou, correndo ao encontro dele.
       O austero senhor arqueou as sobrancelhas, e a postura rígida formal desapareceu ao ver a neta.
       — Adrienne, minha querida! — exclamou, abraçando-a com ternura. — Graças a Deus, você está a salvo! Quando descobri que havia sumido, jurei que a encontraria!
       Com lágrimas nos olhos, ela se deixou envolver pelo abraço saudoso.
       — Oh, vovô! Tenho tantas coisas para lhe contar!
       — Sim, eu sei, meu bem. Mais tarde conversaremos.
       — Sente-se, sir Alexander — Hawke ofereceu, indicando a poltrona ao lado da lareira.
       — Obrigado, Alteza, mas ficarei de pé. — A expressão grave e formal voltou a carregar a fisionomia austera. — Confesso que receei que tivesse raptado minha neta como retaliação pela sina do pai dela, e pelo que eu próprio fiz.
       — Quando cheguei à Virgínia, eu ainda não sabia que Charles Leslie era seu genro — Hawke afirmou, colocando-se à frente dele. — E há muitas formas de causar dano a uma jovem inocente, sir Alexander. No entanto, veja com seus próprios olhos que ela está saudável e livre para ir aonde quiser.
       Os dois homens permaneceram imóveis, como se cada um receasse o movimento que o outro poderia fazer.
       Sir Alexander relanceou o olhar para Adrienne. Ela não era mais a jovem mimada e ingênua que deixara a Virgínia meses atrás. Sua neta havia desabrochado e surgira uma mulher destemida e independente, dona de seu próprio destino. Uma onda de calor invadiu seu peito, e ele sorriu com orgulho.
       — Sim, eu sei que ela está bem, e serei eternamente grato por tê-la trazido para a Inglaterra. — Ele abaixou a cabeça com reverência. — Peço humildemente que me perdoe por eu ter falhado em minha missão.
       — Gratidão e desculpas não bastam para apagar seus erros, sir Alexander, e o pior deles foi ter escondido a verdade de sua própria neta.
       O rosto do nobre senhor se tornou lívido e ele procurou os olhos de Adrienne.
       — Então, você já sabe?
       — Sim. Por que omitiu a verdade, vovô?
       Ele respirou fundo e pousou a mão no ombro dela.
       — Sua mãe... — começou, hesitante, tomando coragem para prosseguir. — Elizabeth Ann ficou desolada com a morte de Charles. Ela não sabia de nada acerca do passado dele. Nunca desconfiou que era um simples cavalariço, preferindo a versão de que o nobre cavalheiro de Warrick havia abdicado de seu título para se aventurar na colônia, ao lado dela.
       — Ela foi tão tola quanto eu — Adrienne murmurou com lágrimas nos olhos.
       -Ela o amava — sir Alexander justificou com um sorriso triste. — E o fato era que, quando cheguei ao Solar Leslie, eu não podia revelar que o homem que ela escolhera para compartilhar sua vida não passava de um criminoso. Decidi, pelo bem de minha filha e de minha neta, manter-me calado, mesmo que tivesse de pagar o alto preço de desonrar minha palavra junto à família Valcon.
       Adrienne tocou o ombro do avô, como se quisesse retirar o peso que ele carregava. Sabia o quanto amava sua única filha. Como poderia odiá-lo pelos segredos que mantivera por amor?
       — Obrigada por tudo que fez por nós, vovô. — Adrienne se pôs na ponta dos pés e o beijou no rosto. — Eu compreendo suas razões. Mamãe não precisa saber de nada.
       As palavras tiveram o poder de dissolver a máscara de dor e angústia que obscureciam o rosto de sir Alexander, e ele sorriu com ternura.
       Voltou-se para Hawke e se ajoelhou diante dele.
       — Peço que me perdoe, Alteza, assim como minha neta o fez. Causei prejuízo a sua família, mas pretendo repará-lo. Junto com minha confissão, eu também trouxe algo que poderá ser útil.
       Levantou-se e caminhou até o hall de entrada, para voltar com um saco de couro que deixara do lado da porta, ao entrar.
       Colocou-o sobre a escrivaninha e o abriu com reverente solenidade, para retirar um majestoso escudo.
       O rosto de Hawke se iluminou num sorriso, e ele avançou dois passos para erguer a rica égide no ar. Acariciou com a ponta dos dedos o brasão da família Valcon, gravado em ouro sobre bronze.
       — Sir Alexander, essa era a única peça que faltava para confirmar meu título de nobreza — anunciou com alegria incontida. — Eu o agradeço, em nome de meus ancestrais.
       — Não cante vitória antes de terminar a batalha, capitão Hawke! — A insinuação hostil rompeu o clima de entusiasmo entre eles. — Você se esqueceu do carregamento de tabaco contrabandeado, razão suficiente para colocá-lo atrás das grades.
       A voz que Adrienne jamais esperava ouvir preencheu o silêncio da biblioteca. Jonathan Culverwell entrou, sem esconder a surpresa ao vê-la.
       — Adrienne!
       Ela o saudou com um aceno indiferente.
       — O que aconteceu com você? Está tão... — Ele avaliou com descaso o traje de montaria que ela usava, com a camisa desabotoada revelando parcialmente o colo. — Não é essa a donzela de quem fiquei noivo!
       O rapaz enviou um olhar acusativo na direção de sir Alexander antes de se voltar para Hawke.
       — Você! — Gritou, estendendo-lhe o dedo. — Você é o responsável por isso!
       — Acalme-se, rapaz — sir Alexander tentou contemporizar.
       — Esse homem... — bradou, com o rosto corado de indignação. — Esse pirata roubou minha prometida e meus lucros!
       Hawke se limitou a encará-lo, com um sorriso irônico nos lábios. Adrienne olhou de um para outro, incapaz de resistir ao impulso de compará-los. Perto de Hawke, Jonathan mais parecia um adolescente assustado.
       — Já basta! — interveio. — Vamos dar um passeio pelo jardim, Jonathan. Quero esclarecer todos os mal-entendidos de uma vez por todas.
       Para seu alívio, o rapaz aceitou. Talvez, se ele se acalmasse, pudesse voltar a ser o cavalheiro que ela conhecera.
       — Venha falar comigo mais tarde — sir Alexander pediu, segurando-lhe a mão. — Vamos discutir sobre a viagem para casa.
       — Está bem, vovô.
       — Estou orgulhoso de você, minha querida — ele disse em tom suave, beijando-lhe a testa.
       Adrienne seguiu para o jardim sem esconder o sorriso vitorioso. O fato de saber que Hawke asseguraria o direito à propriedade bastava para alegrá-la. Mesmo que seu destino fosse voltar para a colônia com o avô, sentia-se realizada por ter descoberto a verdade sobre o passado do pai e redimido os erros dele.
       Ela se deteve diante do tanque de peixes e sentou-se na borda, preparando-se para o confronto com Jonathan.
       — Você vai voltar, não é, Adrienne? — O rapaz pousou as mãos nos ombros dela, obrigando-a a encará-lo.
       O silêncio pesado respondeu a pergunta e ele afastou-se com brusquidão.
       — Você não pode ficar aqui! Nós temos um compromisso, Adrienne!
       Ela permaneceu impassível. Sim, voltaria para a Virgínia, refletiu com pesar.
       Sabia que seu futuro com o homem que amava não passava de uma tola fantasia romântica. Tinha de encarar a realidade. O silêncio dele indicava que não pretendia desposá-la. Ele nunca lhe declarara seu amor.
       Claro, sentia-se atraído e se importava com ela, depois de tudo que haviam compartilhado quando ele era apenas o capitão do Sans Felicia. Mas Nicholas Valcon era um lorde e possuía sangue nobre correndo em suas veias, enquanto ela...
       Adrienne perdeu o olhar na linha do horizonte. Mesmo que não tivesse o amor de Hawke, havia um mundo inteiro convidando-a para conhecer realidades que ela sonhava desde que era criança. O futuro pertencia somente a ela, mas não seria um futuro sem amor.
       Embora o Solar Leslie fosse o único lar que conhecera, seu espírito inquieto não poderia viver aprisionado. Sir Alexander a entenderia, assim como sua mãe. Afinal, ela também havia se aventurado para terras distantes quando jovem.
       Procurando as melhores palavras, ela se levantou e colocou-se diante de seu noivo.
       — Jonathan, espero que entenda, mas quero romper nosso compromisso. Não vou me casar com você. Foi um erro desde o começo, e depois da minha jornada para a Inglaterra, estou certa de que nos distanciamos ainda mais.
       Ele abriu a boca para argumentar, mas ela o deteve com um gesto decidido. Sabia que apenas o orgulho ferido o motivava a insistir.
       — Não diga nada, por favor. Você não me ama, e eu... — eu amo Hawke, quase completou, calando-se a tempo. — Eu também não o amo.
       — E o que o amor tem a ver com isso? Nossas famílias esperam por essa união, Adrienne.
       Ela relanceou os olhos na direção do castelo, banhado pelos suaves raios dourados do sol de inverno. Quase podia ver uma princesa emergir de seu interior, como num conto de fadas.
       — O amor é tudo que importa, Jonathan — declarou com um sorriso.
       — Sir Alexander jamais acatará sua decisão!
       — Sim, ele vai entender. E você também deve explicar a seus pais.
       Adrienne deu-lhe as costas, seguindo pelo caminho de pedregulhos em direção à porta de entrada. Não havia mais nada a dizer, a não ser adeus.
       
       
       Sem ter notícias de Hawke, Adrienne dedicou a tarde ao avô, mostrando-lhe a propriedade e conversando sobre todos os acontecimentos desde que saíra do solar. Ao anoitecer, vestiu-se para o jantar especial que Artois havia preparado e desceu a escadaria para o salão principal.
       Hawke e sir Alexander conversavam ao lado da lareira e voltaram-se para ela assim que perceberam sua presença.
       No mesmo instante, as pesadas portas da entrada se abriram e sir Victor Carlyle foi conduzido à presença deles, escoltado por Bradford e vários guardas armados.
       Atrás dele estava Felicia Carlyle e o coração de Adrienne perdeu um compasso ao avistar a mulher que Hawke amara.
       — Capitão, aqui está o homem responsável pelo uso ilegal de suas terras — Bradford anunciou com gravidade.
       — Mande esses homens me soltarem! — Carlyle bradou, furioso. — Como ousa me acusar, Nicholas? Você não tem o direito!
       — Tenho todos os direitos — Hawke sentenciou. — Hoje à tarde, entreguei aos representantes da coroa o escudo da família, a prova definitiva e derradeira de que sou o legítimo herdeiro de Warrick, a despeito de todos os esforços para me destituir.
       Adrienne pareceu não ouvir a boa notícia. Sua atenção estava voltada para a reação de Hawke ao se deparar com Felicia, e observou com apreensão quando os olhos azuis pousaram na jovem ao lado do pai. Para seu alívio, não demonstraram nada além de indiferença.
       — Nicholas, quero que saiba que não fiz parte desta conspiração contra você.
       — Cale-se Felicia. Você traiu seu próprio pai, ao se recusar a ficar do meu lado.
       Ignorando os protestos, Felicia aproximou-se e tocou o braço de Hawke.
       — Nicholas, por favor ouça...
       — Não há mais nada para ser dito Felicia. Nosso destino foi traçado anos atrás quando você me abandonou.
       O olhar de Felicia recaiu sobre Adrienne, mas em lugar de mágoa ou rancor, transpareciam a mais pura admiração e respeito.
       — Sei que você ama outra mulher, e quero que seja feliz. Não peço nada além de seu perdão.
       Hawke fitou-a colocando uma das mãos em seu ombro.
       — Talvez eu não reagisse assim meses atrás Felicia, mas aprendi muito desde que voltei da colônia. — Tomou-lhe a mão e a beijou em um gesto respeitoso. — Sim, e a perdôo. Assim como você, eu também cometi erros.
       Adrienne lembrou-se de respirar e não pôde evitar que lágrimas banhassem seus olhos.
       Ninguém notou a presença do homem de compleição pequena parado à porta. Ele entrou com passadas rápidas e parou diante de Hawke, com uma mesura formal.
       — Desculpe pela intromissão, alteza, mas trago notícias de suma importância. Sou sir Sheffield, comissário da coroa, e trago uma intimação para o lorde Nicholas Valcon, terceiro conde de Warrick, para tratar do reconhecimento do título de nobreza e da posse definitiva do castelo de Warrick.
       — Magistrado Sheffield, isso não é o que parece! — Victor Carlyle gritou, tentando se desvencilhar dos braços fortes que o prendiam. — Esses homens estão transgredindo a lei por me deter contra minha vontade.
       — Ao contrário. Sir Carlyle, os guardas da coroa estão agindo de acordo com a lei. Há uma petição exigindo sua prisão por atividades ilegais nesta propriedade.
       — Eu serei o lorde de Warrick!
       — Não creio. — Hawke deu um passo à frente. — Estive fora por muitos anos, mas voltei a tempo de reparar meus erros. Estou à disposição da coroa para discutir os termos de posse do castelo Warrick.
       Naquele momento, os homens e mulheres que haviam abandonado a propriedade, aterrorizados pelas lendas pavorosas difundidas por Victor Carlyle, convergiram de todos os pontos para se agruparem à porta do castelo.
       Hawke passeou o olhar pelos rostos cheios de esperança. Aqueles homens e mulheres foram abandonados ao próprio destino, sem ter um senhor que os defendesse. Estava na hora de recompensá-los por todos os anos de sofrimento e privações que sua ausência lhes impusera, decidiu.
       — Meus fiéis serviçais poderão voltar para o castelo e viver sob minha proteção — declarou, comovido. — Estou disposto a lutar pelo direito das terras, se necessário.
       — Não é preciso — o magistrado interveio. — Como representante do rei, declaro que esta questão está encerrada. Posso adiantar-lhe que a coroa não impedirá que retome a posse da propriedade.
       — Oh, Nicholas! Isso é maravilhoso! — Adrienne exclamou, sem conter a emoção.
       — Mas esse homem é um pirata! — Victor Carlyle acusou. — Ele é responsável por saquear todas as embarcações que encontrou pelo caminho, durante os oito anos em que viveu no mar!
       — Suas atividades como... — o magistrado hesitou, procurando a melhor palavra -explorador... serão perdoadas em nome do serviço que prestou à Inglaterra ao eliminar o navio espanhol El Diablo Dorado e entregar à justiça o capitão Rogillio Saldaflia de Barrios. Quanto a você, sir Victor Carlyle, parece ser o único culpado aqui.
       — Isso é um ultraje! Vou denunciá-lo ao rei!
       — Receio que não. O rei é um homem muito ocupado.
       O magistrado despediu-se com uma reverência e saiu, seguido pelos guardas carregando Victor Carlyle, que esbravejava e se debatia com todas as suas forças. Cabisbaixa, Felicia Carlyle acompanhou o pai, sem que Hawke lhe dirigisse uma só palavra.
       — Vá até a cozinha e peça a Artois que prepare um banquete para cinqüenta pessoas — ele ordenou ao serviçal que arrumava a mesa para o jantar. — Quero oferecer uma recompensa a todos aqueles que serviram os Valcon e ficaram abandonados por oito anos.
       O jovem se foi e Hawke se acomodou no grande hall do castelo. Seu peito parecia explodir de emoção. Estava ansioso por compartilhar seu triunfo com Adrienne, que fora a responsável por tornar aquele sonho possível.
       Ele a vira subir para o andar de cima logo que o magistrado e os guardas partiram com Carlyle.
       Encontrou-a no amplo hall, admirando os retratos de seus ancestrais. Ela estava parada diante da figura severa de seu bisavô.
       — Sir Geoffrey — comentou, parando ao lado dela. — Ele deu a volta ao mundo com seu galeão por duas vezes. Era o favorito da rainha, e meu também.
       — Nicholas... — Ela se interrompeu, hesitante. — Ou talvez eu deva me dirigir a você como Milorde Valcon...
       — Para você, serei sempre seu capitão Hawke — ele murmurou, beijando-a de leve na testa.
       — Como sabia que eu estava aqui?
       — Por acaso você ainda pensa que pode fugir de mim? — Ele provocou, bem-humorado. — Fui procurá-la no quarto e Melinda estava arrumando suas malas.
       — Sim. Meu avô espera que eu volte para a Virgínia a bordo do Elizabeth.
       — Você vai se casar com aquele fedelho? — Hawke fitou-a com um misto de fúria e apreensão.
       — Oh, não!
       — Então, vai ficar em Warrick?
       Adrienne cruzou os braços sobre o peito.
       — Como você já notou, minha bagagem está pronta.
       Alarmado, Hawke percebeu que não poderia mantê-la contra sua vontade. Ela era livre para partir. Nem mesmo uma década de aventuras no mar, enfrentando inúmeras adversidades, o deixaram preparado para aquele momento.
       Adrienne, com um simples olhar, tinha poder de reduzi-lo a um inexpressivo tolo.
       — Fique. Fique comigo...
       — Não posso. Eu também tenho sonhos. Saí à procura da verdade que se escondia por detrás da morte de meu pai, e a encontrei. Agora, as coisas não são mais as mesmas. — Ela o encarou com lágrimas nos olhos. — Você não entende? Agora, você é um nobre e eu... Bem, não sou diferente de Melinda.
       — Adrienne, nunca mais repita tamanho absurdo! Eu não me importo com a nobreza. Você é a mulher que amo e isso é tudo que interessa. Como esses dois anéis, nós dois nos completamos como se fôssemos um só ser. Adrienne, eu a amo... — Segurou-a pelo queixo, forçando-a a encará-lo. — E sei que também me ama.
       O tremor nos lábios cheios não passou despercebido a Hawke.
       — Negue se puder, Adrienne!
       Uma eternidade pareceu se transcorrer até que ela erguesse o rosto, revelando a mais vívida emoção em um singelo sorriso.
       — Como poderia? Negar o meu amor seria o mesmo que renegar a própria vida. — Ela pousou a mão no rosto viril, numa carícia suave. — Sim... Sim, eu também o amo!
       Os olhares se encontraram, e Hawke jurou que nunca trairia a confiança inocente que se irradiava nas íris cristalinas transbordantes de paixão e confiança.
       — Vamos compartilhar nossos sonhos, Adrienne. Case-se comigo. — Com suavidade, ele tomou as mãos delicadas e beijou-as apaixonadamente. — Case-se comigo, meu amor...
       — Oh, Nicholas... Isso é tudo que mais desejo!
       E lorde Nicholas Valcon, terceiro conde de Warrick, depositou seu coração nas mãos daquela mulher.